sexta-feira, 31 de julho de 2015

Um dia memorável

Hoje aconteceu algo intrigante comigo. Estava eu, andando na rua, e um rapaz me viu e disse em tom de deboche e em voz alta (ou melhor, absurdamente alta) a seguinte frase: “Você ‘tá gordo’, hein Ronald”. Logo após isso, soltou sorrisinhos juntamente com o seu amigo ao lado. Não tive tempo de me indignar ou dar algum tipo de resposta ao sujeito. Em vez disso, tentei puxar no fundo de todas as minhas memórias passadas quem seria aquele sujeito. Quase me frustrei, mas após um longo esforço, me lembrei. Tal rapaz estudou comigo parte do ensino fundamental e o ensino médio todo. Não éramos amigos, mas éramos considerados colegas somente pelo fato de estudarmos na mesma sala. Não havia nada que nos ligasse no passado, e como vocês podem imaginar, nada que nos ligasse no presente.
Mas estarei mentindo se dissesse apenas isso. Tal rapaz fazia parte de um homogêneo grupo muito intrigante com o qual tive contato em tempos escolares. Digo intrigante porque esse grupo fez não apenas eu, mas todos que se destacavam negativamente na escola se sentirem mal. E isso era intrigante para mim, pois não entendia porque me sentia tão mal. Hoje entendo um pouco tais questões. Tal grupo, formado quase exclusivamente por rapazes orgulhosos de sua masculinidade quase primitiva, taxavam todos os “desviantes” com apelidos racistas, homofóbicos, gordofóbicos, misóginos e por aí vai. Eu mesmo já tive tantos apelidos vergonhosos, que o único que me agradou até hoje foi o apelido de “Coruja”, devido aos meus olhos maiores do que a média.
No entanto, tive sorte. Aliás, tive três tipos de sorte. A primeira sorte que tive foi o meu caráter. Ou melhor, conduta, modo ser, particularidade, ou qualquer nome que melhor se encaixe. O que quero dizer é que a minha tendência a ser impopular e apreciar a impopularidade me manteve sempre afastado de um possível desejo de me igualar a esse grupo que já me deixou muito mal, mas hoje me causa uma certa “tristeza alheia”. Essa foi minha primeira sorte, e devo muito à minha educação familiar.
A segunda sorte que tive, um pouco ligada à primeira, foi a minha paixão natural pelos estudos e os meus consequentes êxitos nos boletins escolares. Isso me dava uma alegria enorme em épocas de escola, e me fazia sentir orgulhoso de quem eu era, mesmo que aquele grupo de colegas da escola me dissesse o contrário. Digo que foi sorte porque é com tristeza que hoje relembro amigos de escola que, tal como eu, eram “desviantes”, e não tinham nem o prazer de ir bem nos estudos. Isso seria certamente uma alegria na vida deles, mas hoje, cresceram tentando fazer parte de uma norma social ridícula, na falsa expectativa de serem “tão melhores” quanto aqueles que debochavam deles (de nós...).
Por fim, a terceira sorte que tive eu nomeio como UFGD. Ou melhor, nomeio como Biblioteca da UFGD. Imaginem vocês um rapaz que sentia que não era tão errado assim como lhe tentaram fazer acreditar, mas não tinha palavras nem para se defender, nem para criticar coisas que ele “sabia” que estavam erradas em sua cultura. Bom, esse rapaz era eu. Agora imaginem a alegria desse rapaz ao descobrir um mundo completamente novo, e títulos que ele nunca imaginava que poderiam fazer parte de um livro (ex: “A dominação masculina”, “Racismo e Sociedade”, “História da Sexualidade”, “Pensar o Corpo”, e tantos outros). Não apenas um vocabulário novo, mas também uma nova forma de pensar surgiu em mim, dando a certeza de um sentimento já antigo: eu não era um erro. Isso foi uma sorte tamanha!
Bom, acreditem ou não, tudo isso passou na minha cabeça após eu me lembrar quem era o rapaz que eu citei no começo do texto, e logo um riso irônico, mas triste, surgiu. Esse riso teve dois motivos. Primeiro, porque é um tanto idiota apontar e debochar de dados tão naturais e comuns como a gordura de alguém. Talvez eu esteja gordo mesmo, mas, se eu fechar os olhos para a minha pressão e o meu colesterol que estão igualmente altos, tal fato não me causa estranheza ou tristeza (devo isso às três sortes que tive). Logo, a tentativa de deboche é sumariamente neutralizada, sem a necessidade de resposta ou mágoa da minha parte.
O segundo e último motivo do meu riso é, talvez, o mais triste. Triste porque me fez lembrar da alegoria da caverna de Platão, do cara que vê a luz e tenta fazer seus pares acreditarem que a luz existe, mas eles não acreditam por estarem desde o nascimento adaptados à escuridão e às sombras. Tal como o cara da caverna, é talvez com tristeza que eu olhe hoje para esse meu ex-colega e veja como ele ainda se prende a conceitos tão ultrapassados, que não faria sentido para qualquer pessoa com dois neurônios. É triste também porque é uma amostra de como existe por aí pessoas com mais de 20 anos, mas ainda infantilizadas, como se vivessem eternamente na hora do recreio, procurando o “coleguinha diferente” para debochar dele e se sentir (mesmo que por alguns instantes) superior.

Mas ora, isso tudo é tão triste, então porque ainda assim eu ri? Bom... eu não sou a pessoa mais boazinha desse mundo, e talvez não chegue nem perto desse ideal. Mas quando eu estava chegando em casa e ainda estava com aquele ex-colega na cabeça, não pude deixar de conter a alegria. E foi uma alegria tão grande, que me fez ter vontade de agradecer ao meu ex-colega. Se o tivesse visto de novo hoje, talvez mil agradecimentos a ele eu daria, pois hoje ele me mostrou o quanto eu evoluí (como todo bom Pokémon) ao me dar um vislumbre dos anos que passei na escola, e notar que aquele rapazinho magrelo, afeminado e tímido já não se sente mal por ser assim, tão estranho. Agora me diga, meu caro ex-colega: era essa a sensação de superioridade que você sentia? Porque se for, eu te entendo. Mas se não for, obrigado de qualquer forma. Você fez o meu dia ser mais feliz!

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