domingo, 9 de fevereiro de 2014

É até compreensível...

Rachel Sheherazade foi, nas últimas semanas, a pop star das redes sociais. Entre o amor e o ódio, Rachel sempre foi alvo de muitas polêmicas em seus discursos, que ela mesma faz questão de caracterizar como um discurso de direita. Também se define como uma jornalista cristã, cidadã de bem e defensora dos bons costumes.
Seu mais recente discurso, alvo de muitas críticas, é de longe o mais polêmico comentário que Rachel já fez na televisão, fato claro até mesmo para quem não acompanha assiduamente o Jornal do SBT. Para entender o contexto de tais palavras, é preciso antes se situar na história do adolescente preso no poste por três jovens auto-intitulados de “os justiceiros”. Tais fatos ocorreram na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde um adolescente acusado de roubo foi espancado, levou uma facada na orelha, teve suas roupas arrancadas e foi preso em um poste com uma corrente usada para prender bicicletas e motos. Num estado de euforia, pode-se dizer (sem medo de errar) que grande parte da população brasileira que teve conhecimento dessa história, apoiou totalmente os atos da “Liga da Justiça brasileira”.
Diante disso, tivemos a mais sublime frase de Rachel Sheherazade: “No país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível. O Estado é omisso, a polícia é desmoralizada, a Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro”. Foi como jogar a dose extra de fermento no bolo: de um lado, defensores dos “justiceiros” ganharam ânimo diante das palavras de alguém que, por fazer parte de um círculo letrado e com grandes possibilidades financeiras, “sabe do que está falando”; do outro lado, pessoas inconformadas com a onda crescente de violência ficaram perplexas diante de tais palavras que só em seus piores sonhos elas acreditaram que escutariam um dia.
Mas qual é o erro de Rachel Sheherazade? É ou não é de fato compreensível que cidadãos, envoltos numa onda de medo, ajam com um ódio brutal diante daqueles que ameaçam (mesmo que simbolicamente) sua segurança? Sim, isso é totalmente compreensível, e é justamente nisso que Rachel quer tecer sua defesa, pontuando que ela, em momento algum, diz aceitar a violência. Sinceramente, até acredito que Rachel não queira que a violência se espalhe, mas sei também que seu comentário é tecido num molde claramente racista, algo que provavelmente Rachel desconhece e nega com toda a sua força. No entanto está lá, no mais íntimo de suas entranhas, o racismo que defende astros como Justin Bieber, mas oferece pouco auxílio a adolescentes negros. Mas ora, racismo é algo presente em todos nós. Numa cultura como a nossa, é certamente difícil (mas não impossível) não ceder ao machismo, ao racismo e à homofobia. Então não, esse ainda não é o erro primordial de Rachel Sheherazade.
Rachel também tece sua defesa em torno da questão da liberdade de expressão. Aqui reside um problema fundamental, que passa longe do entendimento de Rachel (algo que eu acredito que ela o faz de forma consciente, proposital). Nossa constituição garante a todos a liberdade de expressão como um direito básico do cidadão brasileiro. Dentro dessa perspectiva, a liberdade de crença, de orientação sexual, de ideias e de comportamentos são direitos que devem ser garantidos desde que eles não coloquem em cheque a segurança e a integridade de terceiros. Em linhas gerais, é isso. Ponto. Mas definitivamente, não é essa a liberdade de expressão defendida por Rachel.
Quando Rachel diz que estão impedindo ela de se expressar livremente, duas coisas podem ser subentendidas: primeiro, que quando ela se expressa livremente, ela espera que suas palavras não sejam rebatidas; segundo, ela desconhece (ou finge desconhecer) o peso de suas palavras na população não letrada que acompanha seu programa de TV.
No primeiro ponto, temos um paradoxo interessante. As pessoas que, por utilizarem da liberdade de expressão, contestam as ideias de Rachel são acusadas por tentarem calar ela, de colocar um obstáculo em suas palavras. No entanto, uma coisa muito interessante e que não é pensada por aqueles que usam a liberdade de expressão como um mecanismo opressão, é que essa arma da democracia não impede que suas ideias sejam contestadas. Elas impedem que ninguém seja impedido de falar. Assim, qualquer um pode jogar ao vento idiotices e comentários de ódio, mas precisam estar cientes que tais palavras serão contestadas, serão desenvolvidas, e por fim, serão possivelmente reformuladas (isso se supormos que o indivíduo em questão saiba debater civilizadamente). Porém, Rachel vê essas contestações como uma afronta à sua liberdade, algo que, ao meu ver, é um equívoco grande.
O segundo ponto diz respeito ao impacto de suas palavras nas massas. Li certa vez, num blog que acompanho, um conto em que o personagem cita a seguinte frase “não quero saber a opinião do jornalista. Eu quero a notícia. Quem dá a opinião sou eu”. Isso não saiu da minha cabeça desde então, e caiu como uma luva quando li a defesa de Rachel Sheherazade. Nota-se que Rachel não consegue entender que a televisão (e hoje, as redes sociais também) tem um poder gigante na formação da opinião dos cidadãos. Dessa forma, não é preciso dizer explicitamente que concorda com os atos da população, se você diz que é algo compreensível. Uma jornalista na posição de Rachel devia ter conhecimento disso, e saber que, apesar de ser um ato compreensível, é completamente inaceitável a forma como o adolescente do Rio de Janeiro foi tratado.
Hoje, Rachel diz vangloriosa que ela representa a voz do povo brasileiro, do cidadão de bem. Nada mais assustador do que isso, um povo que grita em uma única voz, sem o mínimo de desvio. Aliás, há sim algo mais assustador: um povo que se utiliza da liberdade de expressão para limitar a liberdade alheia, tudo isso “compreendido” (aka aceito) pela jornalista branca, letrada e empregada na segunda maior rede de televisão brasileira. Isso sim me assusta.

Nessas questões, temos que entender que a ética não se resolve apenas no âmbito racional, mas que os afetos também têm voz ativa nesses assuntos. Por isso, esse ato de extrema barbárie protagonizada pelos justiceiros e pelo adolescente preso no poste, visto com um olhar humano e repleto de afetos, nunca será totalmente compreendido e minimamente aceito. E se tal entendimento não resolver essas questões, temos uma colinha, a Declaração dos Direitos Humanos, que de forma clara, define direitos de todos (inclusive os seus, e não apenas dos bandidos, como você erroneamente acredita). Rachel infelizmente não pensou criticamente sobre o assunto, e num ato de extremo retardo mental, não recorreu à colinha. E é por essas e outras que as palavras de Rachel Sheherazade podem até ser entendidas e compreendidas, mas (espero eu) jamais serão aceitas. 

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