Rachel Sheherazade foi, nas
últimas semanas, a pop star das redes sociais. Entre o amor e o ódio, Rachel
sempre foi alvo de muitas polêmicas em seus discursos, que ela mesma faz
questão de caracterizar como um discurso de direita. Também se define como uma
jornalista cristã, cidadã de bem e defensora dos bons costumes.
Seu mais recente discurso, alvo
de muitas críticas, é de longe o mais polêmico comentário que Rachel já fez na
televisão, fato claro até mesmo para quem não acompanha assiduamente o Jornal
do SBT. Para entender o contexto de tais palavras, é preciso antes se situar na
história do adolescente preso no poste por três jovens auto-intitulados de “os
justiceiros”. Tais fatos ocorreram na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde um
adolescente acusado de roubo foi espancado, levou uma facada na orelha, teve
suas roupas arrancadas e foi preso em um poste com uma corrente usada para
prender bicicletas e motos. Num estado de euforia, pode-se dizer (sem medo de
errar) que grande parte da população brasileira que teve conhecimento dessa
história, apoiou totalmente os atos da “Liga da Justiça brasileira”.
Diante disso, tivemos a mais
sublime frase de Rachel Sheherazade: “No país que ostenta incríveis 26
assassinatos a cada 100 mil habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos
de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até
compreensível. O Estado é omisso, a polícia é desmoralizada, a Justiça é falha.
O que resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender,
é claro”. Foi como jogar a dose extra de fermento no bolo: de um lado,
defensores dos “justiceiros” ganharam ânimo diante das palavras de alguém que,
por fazer parte de um círculo letrado e com grandes possibilidades financeiras,
“sabe do que está falando”; do outro lado, pessoas inconformadas com a onda
crescente de violência ficaram perplexas diante de tais palavras que só em seus
piores sonhos elas acreditaram que escutariam um dia.
Mas qual é o erro de Rachel
Sheherazade? É ou não é de fato compreensível que cidadãos, envoltos numa onda
de medo, ajam com um ódio brutal diante daqueles que ameaçam (mesmo que simbolicamente)
sua segurança? Sim, isso é totalmente compreensível, e é justamente nisso que
Rachel quer tecer sua defesa, pontuando que ela, em momento algum, diz aceitar
a violência. Sinceramente, até acredito que Rachel não queira que a violência
se espalhe, mas sei também que seu comentário é tecido num molde claramente
racista, algo que provavelmente Rachel desconhece e nega com toda a sua força. No
entanto está lá, no mais íntimo de suas entranhas, o racismo que defende astros
como Justin Bieber, mas oferece pouco auxílio a adolescentes negros. Mas ora,
racismo é algo presente em todos nós. Numa cultura como a nossa, é certamente
difícil (mas não impossível) não ceder ao machismo, ao racismo e à homofobia.
Então não, esse ainda não é o erro primordial de Rachel Sheherazade.
Rachel também tece sua defesa em
torno da questão da liberdade de expressão. Aqui reside um problema
fundamental, que passa longe do entendimento de Rachel (algo que eu acredito
que ela o faz de forma consciente, proposital). Nossa constituição garante a
todos a liberdade de expressão como um direito básico do cidadão brasileiro.
Dentro dessa perspectiva, a liberdade de crença, de orientação sexual, de
ideias e de comportamentos são direitos que devem ser garantidos desde que eles
não coloquem em cheque a segurança e a integridade de terceiros. Em linhas
gerais, é isso. Ponto. Mas definitivamente, não é essa a liberdade de expressão
defendida por Rachel.
Quando Rachel diz que estão
impedindo ela de se expressar livremente, duas coisas podem ser subentendidas:
primeiro, que quando ela se expressa livremente, ela espera que suas palavras
não sejam rebatidas; segundo, ela desconhece (ou finge desconhecer) o peso de
suas palavras na população não letrada que acompanha seu programa de TV.
No primeiro ponto, temos um
paradoxo interessante. As pessoas que, por utilizarem da liberdade de
expressão, contestam as ideias de Rachel são acusadas por tentarem calar ela, de
colocar um obstáculo em suas palavras. No entanto, uma coisa muito interessante
e que não é pensada por aqueles que usam a liberdade de expressão como um
mecanismo opressão, é que essa arma da democracia não impede que suas ideias
sejam contestadas. Elas impedem que ninguém seja impedido de falar. Assim,
qualquer um pode jogar ao vento idiotices e comentários de ódio, mas precisam
estar cientes que tais palavras serão contestadas, serão desenvolvidas, e por
fim, serão possivelmente reformuladas (isso se supormos que o indivíduo em
questão saiba debater civilizadamente). Porém, Rachel vê essas contestações
como uma afronta à sua liberdade, algo que, ao meu ver, é um equívoco grande.
O segundo ponto diz respeito ao
impacto de suas palavras nas massas. Li certa vez, num blog que acompanho, um
conto em que o personagem cita a seguinte frase “não quero saber a opinião do
jornalista. Eu quero a notícia. Quem dá a opinião sou eu”. Isso não saiu da
minha cabeça desde então, e caiu como uma luva quando li a defesa de Rachel
Sheherazade. Nota-se que Rachel não consegue entender que a televisão (e hoje,
as redes sociais também) tem um poder gigante na formação da opinião dos
cidadãos. Dessa forma, não é preciso dizer explicitamente que concorda com os
atos da população, se você diz que é algo compreensível. Uma jornalista na
posição de Rachel devia ter conhecimento disso, e saber que, apesar de ser um
ato compreensível, é completamente inaceitável a forma como o adolescente do
Rio de Janeiro foi tratado.
Hoje, Rachel diz vangloriosa que
ela representa a voz do povo brasileiro, do cidadão de bem. Nada mais
assustador do que isso, um povo que grita em uma única voz, sem o mínimo de
desvio. Aliás, há sim algo mais assustador: um povo que se utiliza da liberdade
de expressão para limitar a liberdade alheia, tudo isso “compreendido” (aka
aceito) pela jornalista branca, letrada e empregada na segunda maior rede de
televisão brasileira. Isso sim me assusta.
Nessas questões, temos que
entender que a ética não se resolve apenas no âmbito racional, mas que os
afetos também têm voz ativa nesses assuntos. Por isso, esse ato de extrema
barbárie protagonizada pelos justiceiros e pelo adolescente preso no poste,
visto com um olhar humano e repleto de afetos, nunca será totalmente
compreendido e minimamente aceito. E se tal entendimento não resolver essas
questões, temos uma colinha, a Declaração dos Direitos Humanos, que de forma
clara, define direitos de todos (inclusive os seus, e não apenas dos bandidos,
como você erroneamente acredita). Rachel infelizmente não pensou criticamente
sobre o assunto, e num ato de extremo retardo mental, não recorreu à colinha. E
é por essas e outras que as palavras de Rachel Sheherazade podem até ser entendidas
e compreendidas, mas (espero eu) jamais serão aceitas.
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