segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Um Deus bipolar para um rebanho de vaidosos

Independente do que cada um acredita, quem tem um conhecimento mínimo sobre a história do Cristianismo e a forma como a Bíblia se organiza sabe que o Deus do Antigo Testamento não é o mesmo Deus do Novo Testamento. Os primeiros cristãos, inteligentes e muito perspicazes, logo admitiram que havia um mistério nisso, e esse mistério só poderia ser palatável com o advento de um novo mistério: o mistério da Santíssima Trindade. Assim, seguindo a tradição de outros povos, deixamos de ser monoteístas e entramos de cabeça no mundo politeísta, embora cristão algum admita isso. O caso do catolicismo consegue ser o mais interessante ainda, pois aqueles que assim como eu nasceram nessa cultura, já devem ter notado a similaridade da quantidade de santos católicos com os deuses e semi-deuses do panteão grego.
Enfim, disse tudo isso antes como um desabafo do que como algo necessário ao que pretendo dizer. E o que desejo falar é muito simples. Se houve um momento em que o Deus cultuado era o Deus do Antigo Testamento, tal momento negro (que uns preferem chamar de Idade Média) passou por uma lenta transição até o Deus do Novo Testamento através da Reforma Religiosa, iniciada por homens como Martinho Lutero e João Calvino. Isso nos permitiu, entre outras coisas, nos tornamos os capitalistas que somos hoje. E não foi por acaso: o Deus do Novo Testamento é o Deus mais amigável de todos, e é capaz de permitir algo que nem mesmo Zeus, para os gregos, era capaz de aceitar, que é a vaidade humana. Bom, na minha pouca (ou quase nenhuma) noção de história, vejo que uma das coisas mais importantes para sermos os capitalistas que somos hoje é a questão da vaidade, pois humildade nunca foi um bom ingrediente para quem pretende ser mais do que já é. Até para ser santo é preciso ser mais vaidoso que a maioria e acreditar que não há ninguém mais humilde no mundo do que você. São Francisco que o diga!
Mas e hoje, qual será o Deus que decidimos nos ajoelhar? Será ao Deus cruel, capaz de escolher a dedo quais filhos sobreviverão e quais irão sobreviver? Ou o Deus generoso e bondoso, que no seu ato de mais pura misericórdia, se permitiu sofrer para que os seus não sofram? Tirando o dia para pensar nisso, cheguei à conclusão de que não nos ajoelhamos a nenhum dos dois. Apenas escolhemos os ensinamentos daquele que melhor se adéqua à situação. Uma aberração teológica, evidente. Na Grécia Antiga, tirando o culto à Deusa do fogo sagrado (Hestia), era comum o culto a apenas mais um dos deuses; o restante era visto com respeito e temor, nada mais. Mas por que será que somos assim hoje? Por que, quando queremos atacar determinado grupo minoritário, utilizamos uma versão sanguinária de Deus, mas quando olhamos para os que são (aparentemente) iguais a gente, dizemos que Deus salvará a todos? Onde fica a lógica desse tipo de pensamento? Será algum tipo de mistério divino?
Há quem diga que Deus escolhe um povo para ser salvo. Não temo nada mais do que fazer parte do povo escolhido, pois se judeus e (no momento) palestinos sofreram e sofrem as mais diversas barbaridades, é sinal de que ser escolhido é penar duramente em vida até alcançar o Paraíso (me desculpem, mas é impossível acreditar na teologia da prosperidade com exemplos tão claros como esses...). Logo, é complicado usar esse argumento, o de que fazemos parte do povo escolhido, para dizer que nós seremos salvos, mas as minorias não. Se fosse assim, éramos para fazer parte do grupo que leva pedrada na rua diariamente. Então, a menos que você seja o “ladrãozinho” preso no poste, eu só posso te dizer uma coisa: Não! Você não faz parte do povo escolhido. Se você não é perseguido diariamente nas ruas, se não teme ser linchado por andar de mãos dadas com quem ama, se não teme sair por aí com o seu tipo de cabelo e o seu tom de pele, e principalmente, se sabe que é uma pessoa de bem, então só posso te dizer que Deus não te escolheu para fazer parte do rebanho dele. E isso por causa de um simples e claro motivo, que faço questão de repetir: ser parte do rebanho divino envolve sofrimento, algo que só palestinos sabem o que é atualmente.
Então, derrubado esse argumento, retorno à pergunta feita antes: por que Deus salva nossos iguais, mas condena cruelmente nossos diferentes? Por que esse amor é tão condicional? Ou, para quem acredita que Deus ama a todos igualmente, por que só certos pecados são passíveis de serem perdoados, e outros só são capazes de nos proporcionar um encontro com o anjo que virou rei? Meu pensamento chega a apitar me dando a resposta: a vaidade. A vaidade é, novamente, a única resposta capaz de explicar isso. Só que é muito mais engraçado isso agora do que antes. Se Martinho Lutero soubesse a ladeira abaixo com que estava levando a humanidade, talvez repensasse suas ações. Ou não. A gente, nunca sabe até que ponto o casamento é importante na vida de alguém.
O importante é notar que nossa vaidade não é a mesma que nos permitiu ver a Monarquia como um sistema de governo ultrapassado (admiro tanto os gregos por serem mais espertos...). Isso porque ainda éramos capazes de ajoelhar diante do Deus escolhido, o Deus amigável que permitia atos de vaidade. Ele não exigia isso, mas nós fazíamos. Logo, a humildade ainda foi importante nesse momento. Mas hoje, essa humildade, que muitos chamam de depressão e tentam medicá-la, simplesmente passou. Não mais nos ajoelhamos a Deus nenhum, como fazíamos antes. Ao contrário, ele que se ajoelha aos nossos pés. É ele que é chamado agora, cada vez que precisamos justificar nossas ações imorais e antiéticas. Mas, por outro lado, é ao Deus do Antigo Testamento que chamamos cada vez que precisamos julgar ou punir a mulher que foi estuprada por ousar sair a noite sozinha (e de forma indecente, que fique bem claro). Um Deus amoroso e acolhedor com a gente. Um Deus cruel com o outro. Nada mais demonstrativo da vaidade humana que atingiu índices nunca vistos antes na história (sim, eu tenho o sonho de ser âncora...), afinal, não somos nós que vamos até Deus. É ele que vem até nós. É ele que se sujeita. É ele, enfim, quem tem sua voz silenciada ou aplaudida conforme bem nos convém. Vamos admitir: nada mais demagógico, não?
Mas calma lá. Se você é minoria e acha que o Deus de amor pode ser sua salvação, pode tirar seu cavalinho da chuva, como minha avó dizia. Mesmo o Deus de amor não suporta ladrãozinhos e marginais. O Deus de amor, que até me faz suspirar e acreditar num mundo melhor, há muito tempo que já foi privatizado. Mais uma vez, um demonstrativo da vaidade humana.
Bom, só quero concluir dizendo que vaidade não é, para mim, um pecado. Talvez essas sejam palavras de um pecador convicto, mas ainda assim eu teria a mesma reação que Aracne teve quando disse ser melhor que Athena. Mas tudo bem. O importante é que tenho a sensação muito íntima de que, apesar de tudo, serei salvo. Ou não. Esse meu ato de vaidade pode ser a gota d’água no copo cheio de um Deus cansado de servir de capacho para gente arrogante e insensível...


O que terá acontecido com Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?) - I've written a letter to daddy...

Será possível sentir saudades de um tempo não vivido? Não sei se é possível, mas é apenas assim que eu consigo expressar o que sinto quando assisto um bom filme em preto e branco. Desde jovem, eu era apaixonado por imagens em preto e branco. O cinza é uma cor que desde muito cedo me agrada. Mas partindo para o que interessa, fiz todo esse comentário para iniciar meus elogios (que não são poucos) ao filme O que terá acontecido com Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?). Dirigido por Robert Aldrich, o filme foi levado a público pela primeira vez em 1962, e trouxe de volta às telas estrelas de cinema já há muito tempo reconhecidas no meio: as atrizes Bette Davis e Joan Clawford.


O filme conta a história de Jane Hudson, outrora conhecida como Baby Jane, uma menina que ganhou destaque nos palcos. No entanto, após a velhice ter chegado, ela vive enclausurada, sem fama e nenhuma glória, em uma mansão junto com sua irmã Blanche Hudson. Blanche foi, quando criança, uma menina muito desprezada pelos pais, mas que conquistou muita fama na juventude, ao contrário de sua irmã Jane, que não conseguiu manter o sucesso que atingiu quando criança. Após um acidente de carro (fato esse muito relevante para toda a história), Blanche perde os movimentos das pernas, e se vê aos cuidados de sua irmã Jane. Agora, Jane é apenas um reflexo distorcido da grande estrela que foi quando criança, e isso é um fato que trás grandes consequências à sanidade de Jane.

O diretor, Robert Aldrich
O destaque é, logicamente, de Bette Davis como Baby Jane. É incrível como a personagem se desenvolveu tanto em um filme que não chega a 2 horas de duração. Jane é, para todos os efeitos, uma criança que não cresceu, e quando digo criança, esqueça as concepções angelicais que a nossa sociedade dita sobre o que é ser criança. Jane é impulsiva, cruel, capaz de sentir ódio, culpa e amor em um curto espaço de tempo. Célebre ficou para mim a cena em que ela coloca uma ratazana no jantar de Blanche, demonstrando bem o espírito infantil que Jane possui. Mas no decorrer da história, paramos de achar graça desse jeito de Jane, e passamos a temê-la. Jane fica sinistra, e o momento que abre definitivamente o lado mais sombrio de Jane é quando ela canta I've written a letter to daddy com o acompanhamento musical de Edwin Flagg (Victor Buono). Essa música foi o sucesso de Baby Jane quando criança, mas ganha ares sinistros e assustadores quando interpretado por Jane depois de velha.
Joan Crawford não fica para trás em sua atuação ao interpretar Blanche Hudson. Na verdade, Joan só não se destaque porque Blanche é uma personagem que deve representar a sanidade dentro do filme, e por isso, não é quem mais fica sob os holofotes. No entanto, não posso deixar de dizer que Joan foi muito além do que seu personagem exigia de si. A cena em que ela fica desesperada, andando em círculos dentro de seu quarto com sua cadeira de rodas, foi um momento tão sublime que fica impossível não se identificar com o desespero de Blanche, que se vê cada vez mais prisioneira dos maus tratos psicológicos e, consequentemente, físicos que sua irmã é capaz de fazer. Mas para além disso, Joan consegue deixar no ar a dúvida: será capaz alguém ser tão bonzinho assim com alguém que só lhe causa sofrimento? Essa dúvida me deixou intrigado durante o filme inteiro, e só o desfecho (que foi o desfecho mais surpreendente que já vi em minha vida) é que foi capaz de sanar minha dúvida. E não, não era a bondade pura e simples que oferecia a base ao tratamento que Blanche dava à sua irmã.


E ao contrário da maioria das resenhas que li, nas quais o destaque de ator coadjuvante foi dado à Victor Buono, eu prefiro elogiar a atuação de Maidie Norman como a empregada Elvira. Seu personagem foi fundamental no início da história (já em 1963), pois é a ela que Blanche confere suas palavras de pena e solidariedade a Jane. E além disso, é Elvira que faz o papel do público ao também não entender como Blanche pode suportar conviver com a irmã Jane.

Blanche (Joan Clawford) e Elvira (Maidie Norman)
O que terá acontecido com Baby Jane? é um filme que vale a pena assistir, pois demonstra uma fase muito promissora dos filmes americanos. Mesmo não seguindo a forma como os filmes de terror são feitos atualmente, o filme dirigido por Robert Aldrich consegue nos assustar muito. Não é um terror que nos pega de surpresa, mas um suspense que nos instiga a continuar assistindo o filme, mesmo que nossos corações batam mais rápidos, tanto por pena de Blanche quanto por medo de Jane. Uma história ótima para quem é fã de um terror psicológico.
Por fim, deixo a dica a quem se interessar pelo filme a assisti-lo até o final, pois é um desfecho muito revelador e que marca bem a que ponto a loucura de Jane (agora como Baby Jane definitivamente) chegou. Um belo retrato de quem se recusa a crescer.




Obs: Adorei pesquisar sobre esse filme, pois além de conhecer as atrizes Bette Davis e Joan Clawford, tive conhecimento do desgosto que uma tinha sobre a outra. Sentimento esse que, na minha opinião, ajudou muito no realismo com que a relação das irmãs Jane e Blanche foi retratado na tela.

Azul é a cor mais quente (La Vie d'Adéle) – “[...] mas tenho muito carinho por você, e sempre terei”

O cinema francês é incrível! Não consigo me expressar de outra maneira. Desde que entrei nessa “vibe” de assistir filmes “cults” (ou seja, filmes que fogem da regra imposta pelos filmes hollywodianos, nos quais os efeitos visuais e a adrenalina são mais importantes do que os diálogos), tenho me impressionado bastante com a delicadeza e profundidade com que a França consegue contar suas histórias ao público. Para mim, é como estar abrindo meus olhos a um novo mundo, depois de estar a um longo tempo insatisfeito, mas sem saber o porquê.
Enfim, a resenha de hoje é sobre um filme que se encaixa como uma luva nessas minhas impressões iniciais. Trata-se do filme Azul é a cor mais quente (La Vie d'Adéle), filme de 2012 dirigido por Abdellatif Kechiche e inspirado livremente pela HQ de Julie Maroh, Le Bleu est une Couleur Chaude. A história conta a vida de Adèle (Adèle Exarchopoulos), uma garota de 15 anos que se vê apaixonada por Emma (Léa Seydoux), uma mulher um pouco mais velha, dona de belos cabelos azuis e cujo oficial principal é a pintura e o desenho.


O interessante é que apesar desse ser o resumo do filme, essa história é antes sobre a descoberta de Adèle (e de certa forma, de Emma também) a respeito de si mesma. Tanto que não é por acaso que Jean Paul Sartre (filósofo que eu estimo muito) é citado em certas passagens do filme através de seu ensinamento mais célebre: a existência precede a essência. E isso fica claro porque Adèle literalmente se descobre homossexual através da paixão singela, porém intensa, por Emma.
A construção das personagens não poderia ocorrer de forma mais sublime. Adèle é a típica adolescente com conflitos da adolescência, e embora esse seja um clichê, o filme se utiliza muito bem disso para dar forma a Adèle. No que começa com um simples conflito sobre “que faculdade fazer” se transforma num conflito muito mais intenso sobre a busca de “quem eu sou’. E nessa busca, Adèle precisou fazer escolhas não tão fáceis, como por exemplo, suas relações de amizades. Numa as cenas que eu mais me revoltei, aqueles que se diziam amigas de Adèle foram as primeiras a julgarem e se desfazerem dela. Um ensinamento muito real sobre quem são nossos amigos realmente, que em minha opinião, são aqueles capazes de aceitar nossas mudanças.
A personagem Emma não fica para trás. Apresentada como a garota mente aberta e pé no chão, ela representa o contraponto de Adèle ao oferecer um personagem com quem o público adulto posso se identificar também. E de fato, Emma faz jus ao título “azul é a cor mais quente”, pois foi ela quem trouxe intensidade à vida monótona de Adèle. Além disso, acho que cabe dizer aqui que eu mesmo me apaixonei por Emma. Ela conseguiu me conquistar. Eis meu destino: cada vez que me apaixono por mulheres, são por lésbicas... Como diz a mãe de Adèle em determinado momento do filme, azul é uma cor que caiu muito bem em Emma.


Na humilde opinião de quem apenas aprecia, mas não entende as variáveis técnicas de um filme, eu diria que a história de Adèle conseguiu um dos seus objetivos principais, que eu acredito que seja o de mostrar uma relação afetiva lésbica de forma bastante delicada e abarcando toda a complexidade psicológica e social que são inerentes à vida de nós, homossexuais.
O diretor, Abdellatif Kechiche 
O filme conquistou em 2013 o prêmio Palmas de Ouro, no Festival de Cannes, mas sua curta história não é isenta de problemas e críticas. Léa Seydoux deu um comentário bastante crítico a respeito da forma como Abdellatif Kechiche dirigiu o filme, principalmente no que diz respeito às cenas de sexo (“Me senti uma prostituta”, disse Léa Seydoux). De fato, para quem como eu foi pego de surpresa em relação às cenas de sexo, tais momentos do filme causam bastante surpresa, ainda mais quando percebemos que essas cenas demoram a acabar. E por isso, imagino que gravar tais cenas deve ter sido bastante desconfortável às atrizes. Acho inquestionável que foram exatamente essas cenas que fecharam com chave de ouro a impressão que temos de como Adéle se jogou de cabeça em sua relação com Emma, e se eu for olhar apenas para o valor artístico, eu não tiraria tais cenas. Mas consigo compreender também o possível desconforto de Léa Seydoux.

Fora isso, percebi o filme como uma verdadeira lição de filosofia existencialista e de filosofia prática. Minha primeira impressão eu justifico devido à descoberta de si mesmo que ocorreu com Adèle, ou melhor, de sua definição. A minha segunda impressão é devido ao final do filme, que me lembrou uma frase que levo comigo até hoje: a vida não é feita de finais felizes.