Independente do que cada um
acredita, quem tem um conhecimento mínimo sobre a história do Cristianismo e a
forma como a Bíblia se organiza sabe que o Deus do Antigo Testamento não é o
mesmo Deus do Novo Testamento. Os primeiros cristãos, inteligentes e muito
perspicazes, logo admitiram que havia um mistério nisso, e esse mistério só
poderia ser palatável com o advento de um novo mistério: o mistério da
Santíssima Trindade. Assim, seguindo a tradição de outros povos, deixamos de
ser monoteístas e entramos de cabeça no mundo politeísta, embora cristão algum
admita isso. O caso do catolicismo consegue ser o mais interessante ainda, pois
aqueles que assim como eu nasceram nessa cultura, já devem ter notado a similaridade
da quantidade de santos católicos com os deuses e semi-deuses do panteão grego.
Enfim, disse tudo isso antes
como um desabafo do que como algo necessário ao que pretendo dizer. E o que
desejo falar é muito simples. Se houve um momento em que o Deus cultuado era o
Deus do Antigo Testamento, tal momento negro (que uns preferem chamar de Idade
Média) passou por uma lenta transição até o Deus do Novo Testamento através da
Reforma Religiosa, iniciada por homens como Martinho Lutero e João Calvino. Isso
nos permitiu, entre outras coisas, nos tornamos os capitalistas que somos hoje.
E não foi por acaso: o Deus do Novo Testamento é o Deus mais amigável de todos,
e é capaz de permitir algo que nem mesmo Zeus, para os gregos, era capaz de
aceitar, que é a vaidade humana. Bom, na minha pouca (ou quase nenhuma) noção
de história, vejo que uma das coisas mais importantes para sermos os
capitalistas que somos hoje é a questão da vaidade, pois humildade nunca foi um
bom ingrediente para quem pretende ser mais do que já é. Até para ser santo é
preciso ser mais vaidoso que a maioria e acreditar que não há ninguém mais
humilde no mundo do que você. São Francisco que o diga!
Mas e hoje, qual será o Deus que
decidimos nos ajoelhar? Será ao Deus cruel, capaz de escolher a dedo quais
filhos sobreviverão e quais irão sobreviver? Ou o Deus generoso e bondoso, que
no seu ato de mais pura misericórdia, se permitiu sofrer para que os seus não
sofram? Tirando o dia para pensar nisso, cheguei à conclusão de que não nos
ajoelhamos a nenhum dos dois. Apenas escolhemos os ensinamentos daquele que
melhor se adéqua à situação. Uma aberração teológica, evidente. Na Grécia
Antiga, tirando o culto à Deusa do fogo sagrado (Hestia), era comum o culto a
apenas mais um dos deuses; o restante era visto com respeito e temor, nada
mais. Mas por que será que somos assim hoje? Por que, quando queremos atacar
determinado grupo minoritário, utilizamos uma versão sanguinária de Deus, mas
quando olhamos para os que são (aparentemente) iguais a gente, dizemos que Deus
salvará a todos? Onde fica a lógica desse tipo de pensamento? Será algum tipo
de mistério divino?
Há quem diga que Deus escolhe um
povo para ser salvo. Não temo nada mais do que fazer parte do povo escolhido,
pois se judeus e (no momento) palestinos sofreram e sofrem as mais diversas
barbaridades, é sinal de que ser escolhido é penar duramente em vida até
alcançar o Paraíso (me desculpem, mas é impossível acreditar na teologia da
prosperidade com exemplos tão claros como esses...). Logo, é complicado usar
esse argumento, o de que fazemos parte do povo escolhido, para dizer que nós
seremos salvos, mas as minorias não. Se fosse assim, éramos para
fazer parte do grupo que leva pedrada na rua diariamente. Então, a menos que você
seja o “ladrãozinho” preso no poste, eu só posso te dizer uma coisa: Não! Você
não faz parte do povo escolhido. Se você não é perseguido diariamente nas ruas,
se não teme ser linchado por andar de mãos dadas com quem ama, se não teme sair
por aí com o seu tipo de cabelo e o seu tom de pele, e principalmente, se sabe
que é uma pessoa de bem, então só posso te dizer que Deus não te escolheu para
fazer parte do rebanho dele. E isso por causa de um simples e claro motivo, que
faço questão de repetir: ser parte do rebanho divino envolve sofrimento, algo
que só palestinos sabem o que é atualmente.
Então, derrubado esse argumento,
retorno à pergunta feita antes: por que Deus salva nossos iguais, mas condena
cruelmente nossos diferentes? Por que esse amor é tão condicional? Ou, para
quem acredita que Deus ama a todos igualmente, por que só certos pecados são
passíveis de serem perdoados, e outros só são capazes de nos proporcionar um
encontro com o anjo que virou rei? Meu pensamento chega a apitar me dando a
resposta: a vaidade. A vaidade é, novamente, a única resposta capaz de explicar isso. Só
que é muito mais engraçado isso agora do que antes. Se Martinho Lutero soubesse
a ladeira abaixo com que estava levando a humanidade, talvez repensasse suas
ações. Ou não. A gente, nunca sabe até que ponto o casamento é importante na
vida de alguém.
O importante é notar que nossa
vaidade não é a mesma que nos permitiu ver a Monarquia como um sistema de
governo ultrapassado (admiro tanto os gregos por serem mais espertos...). Isso
porque ainda éramos capazes de ajoelhar diante do Deus escolhido, o Deus
amigável que permitia atos de vaidade. Ele não exigia isso, mas nós fazíamos.
Logo, a humildade ainda foi importante nesse momento. Mas hoje, essa humildade,
que muitos chamam de depressão e tentam medicá-la, simplesmente passou. Não
mais nos ajoelhamos a Deus nenhum, como fazíamos antes. Ao contrário, ele que
se ajoelha aos nossos pés. É ele que é chamado agora, cada vez que precisamos
justificar nossas ações imorais e antiéticas. Mas, por outro lado, é ao Deus do
Antigo Testamento que chamamos cada vez que precisamos julgar ou punir a mulher
que foi estuprada por ousar sair a noite sozinha (e de forma indecente, que
fique bem claro). Um Deus amoroso e acolhedor com a gente. Um Deus cruel com o
outro. Nada mais demonstrativo da vaidade humana que atingiu índices nunca
vistos antes na história (sim, eu tenho o sonho de ser âncora...), afinal, não somos nós que vamos até Deus. É ele que vem até nós. É ele que se sujeita. É
ele, enfim, quem tem sua voz silenciada ou aplaudida conforme bem nos convém.
Vamos admitir: nada mais demagógico, não?
Mas calma lá. Se você é minoria
e acha que o Deus de amor pode ser sua salvação, pode tirar seu cavalinho da
chuva, como minha avó dizia. Mesmo o Deus de amor não suporta ladrãozinhos e
marginais. O Deus de amor, que até me faz suspirar e acreditar num mundo
melhor, há muito tempo que já foi privatizado. Mais uma vez, um demonstrativo
da vaidade humana.
Bom, só quero concluir dizendo
que vaidade não é, para mim, um pecado. Talvez essas sejam palavras de um
pecador convicto, mas ainda assim eu teria a mesma reação que Aracne teve
quando disse ser melhor que Athena. Mas tudo bem. O importante é que tenho a
sensação muito íntima de que, apesar de tudo, serei salvo. Ou não. Esse meu ato
de vaidade pode ser a gota d’água no copo cheio de um Deus cansado de servir de
capacho para gente arrogante e insensível...







