Às vezes me
canso desse espetáculo que é a vida social. Não porque acredito ser um erro as
pessoas transformarem em espetáculo suas vidas, afinal não acho certo e nem
útil ir contra isso. O que me cansa é o convite, ou melhor, a imposição de que
todos participem desse espetáculo. É preciso aparecer, é preciso demonstrar, é
preciso aparentar o mínimo 'auto-estima' (uma palavra que odeio) e mostrar seja
lá o que for. Não é uma questão de dizer que a vida é um teatro, onde há o
palco e a platéia. Não, antes fosse. Não há mais platéia. É um espetáculo que,
na sua ânsia de ser democrático, se torna impositivo, e aqueles que querem ser
meros "apreciadores" são tomados como estranhos, para se dizer o
mínimo, ou mesmo seres de outros planetas. É preciso aparecer, e como futuro
psicólogo, sei que quem tenta não fazer parte disso corre sérios riscos de ser
psicopatologizado. Uma pena, pois mesmo para mim, que tento dar valor àquilo
que tenho de mais íntimo (minha intimidade), muitas vezes me vejo tentado ou
coagido a excluí-la de minha vida, seja por razões ditas "políticas",
seja por razões fúteis. Não se trata, portanto, de um grito contra a obrigação
de expor a própria intimidade. Se fosse só isso, eu me sentiria plenamente
confortável. Mas não. Se trata antes de tudo de eliminar qualquer traço de
intimidade, de privado, de "só meu e de quem eu aceite dividir". Tudo
deve ser público, e isso me cansa.
sábado, 21 de fevereiro de 2015
Resenha do livro “A História da Sexualidade I: A vontade de saber”
"[...]
mais servil ante às potências da ordem do que dócil às exigências da
verdade". (p.54)
O presente
texto terá por objetivo apresentar alguns comentários e pontos de vista
referentes ao primeiro livro da coleção História da Sexualidade, do filósofo
Michel Foucault (1926-1984). Foucault, como será chamado a partir de agora, foi
um pensador famoso por elaborar teorias em que relacionava poder e conhecimento
com as estruturas de controle social. Suas obras são consideradas como um
conjunto de ideias dentro do pós-estruturalismo francês, muito embora o próprio
Foucault tenha negado isso mais tarde e seus escritos demonstrem um evidente
desvio desse arcabouço teórico.
“História da
Sexualidade I: A vontade de saber” é considerada uma das principais obras do
autor, muito embora ela não sirva como parâmetro para se entender seus
principais pensamentos. Isso porque é nesse livro que Foucault inicia suas
curiosas ideias sobre poder e suas formas complexas de controle social. O livro
é dividido em cinco capítulos, nos quais ele apresenta a ideia comum que se tem
sobre a história da sexualidade, refuta tal ideia e demonstra o que estava
realmente em jogo.
Tal ideia diz
respeito ao que Foucault chama de “hipótese repressiva”, ou seja, a ideia de
que o sexo (e consequentemente, todos os discursos sobre sexo) foi reprimido na
Era Vitoriana[1],
devido a uma moral supostamente forte. É sobre essa hipótese que Foucault
levanta as seguintes questões: (1) o regime de repressão ao sexo foi instaurado
historicamente? (2) o poder é sempre repressivo? (3) o discurso crítico contra
a repressão é, também, uma forma de repressão? E assim, Foucault levanta sua
primeira tese, na qual aponta que "[...] a ilusão está em fazer dessa
interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia
escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna" (p.
17). Ou seja, para Foucault, o que houve não foi uma repressão dos discursos
sobre o sexo, mas ao contrário, uma explosão discursiva sobre o sexo nos três
últimos séculos, mas junto com uma depuração, uma purificação da linguagem.
Tal tese nos
parece, a princípio, não válida, visto que já está tão enraizado em nossa
cultura a ideia de que sexo sempre foi proibido e de que falar sobre ele era um
ato de enfrentamento diante de uma norma social rígida. O que Foucault nos diz
é que, se antes da Idade Moderna havia apenas o discurso teológico, a partir
dela se proliferou discursos das mais diferentes áreas do conhecimento humano:
há um discurso médico, psiquiátrico, psicológico, moral, demográfico, biológico
e político (além de outros possíveis, em minha opinião). Assim, é possível
interpretar que se não ocorreu uma proibição no discurso sobre o sexo, o que
houve foi uma normatização, um "como se deve falar". Ou seja, o que
há na verdade é uma incitação ao falar sobre sexo, mas dentro de formas
variadas, embora rígidas, de discurso.
Essa é a ideia
geral e friamente resumida do que me foi possível extrair do livro. No entanto,
determinados trechos me fizeram pensar e, se não fui capaz de discordar de
Foucault, tentei ir um pouco além (se é que me foi possível tal proeza). Um
exemplo é o trecho que diz "o sodomita era um reincidente, agora o homossexual
é uma espécie” (p. 44) o que para Foucault é entendido como fruto das
classificações que surgiram na Idade Moderna. Mas será que é só uma tentativa
da Scientia Sexualis (termo usado por Foucault para nomear os diversos
discursos que se produziram) de classificar? Não houve um propósito, talvez não
tão implícito de desumanizar determinados grupos com práticas sexuais distintas
das demais? Note que é a partir daqui que o homossexual passa a ser uma
classificação não apenas de práticas, mas de todo um estado do ser, ou seja,
uma classificação identitária. Ora, isso não é um objetivo claro de delimitar
uma nova espécie, uma espécie que não é a humana? Sinto, no entanto, que
Foucault responde a essa minha dúvida. De
acordo com ele, tais classificações não foram neutras. Elas tinham um objetivo
claro de delimitar o normal e são do anormal, patológico e desviante. Tal
trabalho foi feito com maestria pelas instâncias médicas, psiquiátricas e
jurídicas.
Uma outra ideia
nova é a ideia de poder que Foucault defende. A princípio, é preciso dizer que esse
conceito não é mais entendido como algo exterior aos indivíduos. Para Foucault,
o poder deve ser compreendido
"[...]
como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos
incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de
força encontram uma nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário,
as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em
que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais." (p.
88-89)
Assim, com a
saída da Igreja do campo de controle do sexo no século XVIII, tal tarefa vira
responsabilidade do Estado. Seus dispositivos de saber-poder são, agora, (1) a
histerização do corpo feminino, (2) a pedagogização do sexo das crianças, (3) a
socialização das condutas (normais e anormais) de procriação e (3) a
psiquiatrização do prazer perverso. Para isso, foi preciso criar tecnologias de
controle do sexo, e Foucault cita pelo menos três delas: a Pedagogia e o ensino
de crianças, a Fisiologia como medicina do sexo feminino e a Economia como o
controle demográfico.
Vale ressaltar,
no entanto, que o controle do sexo, da sexualidade, dos "instintos
sexuais" era algo restrito às classes elitizadas. Não foi uma tentativa de
dominar as classes desprivilegiadas (pelo menos a priori), mas de refinar a
elite. Aqui, vale citar o conceito de biopoder proposto por Foucault antes de
dar continuidade ao tema iniciado. Assim, se antes o poder se manifestava nas
sociedades antigas a partir da morte (ou seja, quem morre e quem não morre),
após o período clássico é o controle sobre a vida que se sobressaiu. O sexo,
por ser o mecanismo primordial que dá início à vida precisava, portanto, ser
controlado. Controlar o sexo era, em última instância, controlar a vida. Dessa
forma, a descendência sadia das classes elitizadas foi motivo último da ampla orientação
sexual, da disseminação de vários mecanismos de saber-poder sobre o sexo que
imperaram na Idade Moderna. "Ao invés de uma repressão do sexo das classes
a serem exploradas, tratou-se, primeiro, do corpo, do vigor, da longevidade, da
progenitura e da descendência das classes que 'dominavam'" (p. 116).
Pode-se notar,
portanto, o caráter de “novidade” que ainda cerca as ideias de Foucault. Com um
olhar apurado, Foucault foi capaz de mostrar uma nova forma de olhar o nosso
passado, de entender como nos constituímos. Mas antes de todas essas ideias, a
que mais me chamou a atenção, talvez a ideia principal que Foucault tentou
passar é a seguinte: de que tanto o sexo quanto as sexualidades são, antes de
mais nada, discursos socialmente constituídos. E não algo natural, intrínseco a
uma suposta natureza humana. No fundo, é uma forma indireta de dizer que a
ciência não descobre verdades, mas as produz; uma ideia que Foucault desenvolve
com mais exatidão em suas obras posteriores.
REFERÊNCIA
FOUCAULT, Michel. História da
Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza de Costa
Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
[1]
Vale notar que as considerações de Foucault se referem quase que inteiramente à
história européia.
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