sábado, 21 de fevereiro de 2015

Resenha do livro “A História da Sexualidade I: A vontade de saber”

"[...] mais servil ante às potências da ordem do que dócil às exigências da verdade". (p.54)
O presente texto terá por objetivo apresentar alguns comentários e pontos de vista referentes ao primeiro livro da coleção História da Sexualidade, do filósofo Michel Foucault (1926-1984). Foucault, como será chamado a partir de agora, foi um pensador famoso por elaborar teorias em que relacionava poder e conhecimento com as estruturas de controle social. Suas obras são consideradas como um conjunto de ideias dentro do pós-estruturalismo francês, muito embora o próprio Foucault tenha negado isso mais tarde e seus escritos demonstrem um evidente desvio desse arcabouço teórico.


“História da Sexualidade I: A vontade de saber” é considerada uma das principais obras do autor, muito embora ela não sirva como parâmetro para se entender seus principais pensamentos. Isso porque é nesse livro que Foucault inicia suas curiosas ideias sobre poder e suas formas complexas de controle social. O livro é dividido em cinco capítulos, nos quais ele apresenta a ideia comum que se tem sobre a história da sexualidade, refuta tal ideia e demonstra o que estava realmente em jogo.
Tal ideia diz respeito ao que Foucault chama de “hipótese repressiva”, ou seja, a ideia de que o sexo (e consequentemente, todos os discursos sobre sexo) foi reprimido na Era Vitoriana[1], devido a uma moral supostamente forte. É sobre essa hipótese que Foucault levanta as seguintes questões: (1) o regime de repressão ao sexo foi instaurado historicamente? (2) o poder é sempre repressivo? (3) o discurso crítico contra a repressão é, também, uma forma de repressão? E assim, Foucault levanta sua primeira tese, na qual aponta que "[...] a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna" (p. 17). Ou seja, para Foucault, o que houve não foi uma repressão dos discursos sobre o sexo, mas ao contrário, uma explosão discursiva sobre o sexo nos três últimos séculos, mas junto com uma depuração, uma purificação da linguagem.
Tal tese nos parece, a princípio, não válida, visto que já está tão enraizado em nossa cultura a ideia de que sexo sempre foi proibido e de que falar sobre ele era um ato de enfrentamento diante de uma norma social rígida. O que Foucault nos diz é que, se antes da Idade Moderna havia apenas o discurso teológico, a partir dela se proliferou discursos das mais diferentes áreas do conhecimento humano: há um discurso médico, psiquiátrico, psicológico, moral, demográfico, biológico e político (além de outros possíveis, em minha opinião). Assim, é possível interpretar que se não ocorreu uma proibição no discurso sobre o sexo, o que houve foi uma normatização, um "como se deve falar". Ou seja, o que há na verdade é uma incitação ao falar sobre sexo, mas dentro de formas variadas, embora rígidas, de discurso.
Essa é a ideia geral e friamente resumida do que me foi possível extrair do livro. No entanto, determinados trechos me fizeram pensar e, se não fui capaz de discordar de Foucault, tentei ir um pouco além (se é que me foi possível tal proeza). Um exemplo é o trecho que diz "o sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie” (p. 44) o que para Foucault é entendido como fruto das classificações que surgiram na Idade Moderna. Mas será que é só uma tentativa da Scientia Sexualis (termo usado por Foucault para nomear os diversos discursos que se produziram) de classificar? Não houve um propósito, talvez não tão implícito de desumanizar determinados grupos com práticas sexuais distintas das demais? Note que é a partir daqui que o homossexual passa a ser uma classificação não apenas de práticas, mas de todo um estado do ser, ou seja, uma classificação identitária. Ora, isso não é um objetivo claro de delimitar uma nova espécie, uma espécie que não é a humana? Sinto, no entanto, que Foucault responde a essa minha dúvida.          De acordo com ele, tais classificações não foram neutras. Elas tinham um objetivo claro de delimitar o normal e são do anormal, patológico e desviante. Tal trabalho foi feito com maestria pelas instâncias médicas, psiquiátricas e jurídicas.
Uma outra ideia nova é a ideia de poder que Foucault defende. A princípio, é preciso dizer que esse conceito não é mais entendido como algo exterior aos indivíduos. Para Foucault, o poder deve ser compreendido
"[...] como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram uma nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais." (p. 88-89)
Assim, com a saída da Igreja do campo de controle do sexo no século XVIII, tal tarefa vira responsabilidade do Estado. Seus dispositivos de saber-poder são, agora, (1) a histerização do corpo feminino, (2) a pedagogização do sexo das crianças, (3) a socialização das condutas (normais e anormais) de procriação e (3) a psiquiatrização do prazer perverso. Para isso, foi preciso criar tecnologias de controle do sexo, e Foucault cita pelo menos três delas: a Pedagogia e o ensino de crianças, a Fisiologia como medicina do sexo feminino e a Economia como o controle demográfico.
Vale ressaltar, no entanto, que o controle do sexo, da sexualidade, dos "instintos sexuais" era algo restrito às classes elitizadas. Não foi uma tentativa de dominar as classes desprivilegiadas (pelo menos a priori), mas de refinar a elite. Aqui, vale citar o conceito de biopoder proposto por Foucault antes de dar continuidade ao tema iniciado. Assim, se antes o poder se manifestava nas sociedades antigas a partir da morte (ou seja, quem morre e quem não morre), após o período clássico é o controle sobre a vida que se sobressaiu. O sexo, por ser o mecanismo primordial que dá início à vida precisava, portanto, ser controlado. Controlar o sexo era, em última instância, controlar a vida. Dessa forma, a descendência sadia das classes elitizadas foi motivo último da ampla orientação sexual, da disseminação de vários mecanismos de saber-poder sobre o sexo que imperaram na Idade Moderna. "Ao invés de uma repressão do sexo das classes a serem exploradas, tratou-se, primeiro, do corpo, do vigor, da longevidade, da progenitura e da descendência das classes que 'dominavam'" (p. 116).
Pode-se notar, portanto, o caráter de “novidade” que ainda cerca as ideias de Foucault. Com um olhar apurado, Foucault foi capaz de mostrar uma nova forma de olhar o nosso passado, de entender como nos constituímos. Mas antes de todas essas ideias, a que mais me chamou a atenção, talvez a ideia principal que Foucault tentou passar é a seguinte: de que tanto o sexo quanto as sexualidades são, antes de mais nada, discursos socialmente constituídos. E não algo natural, intrínseco a uma suposta natureza humana. No fundo, é uma forma indireta de dizer que a ciência não descobre verdades, mas as produz; uma ideia que Foucault desenvolve com mais exatidão em suas obras posteriores.

REFERÊNCIA
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza de Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.






[1] Vale notar que as considerações de Foucault se referem quase que inteiramente à história européia.

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