O assunto daqui de casa é, na
maioria das vezes, os animais. A razão disso é o fato de minha mãe trabalhar
como faxineira no Centro de Controle de Zoonoses (CCZ). Também não é raro ela
relatar casos de animais mal tratados que aparecem na instituição. Nosso amor
por animais é tanto, que um dos gatos que possuímos atualmente teve sua perna
traseira esquerda arrancada/cortada de maneira brutal quando ainda era filhote.
Minha mãe (e o resto da família) teve pena do animal, e resolveu adotá-lo.
Hoje, esse gato ainda é desconfiado em relação às pessoas, mas é amoroso com
todos nós.
Nessa semana, minha mãe nos
contou o caso de um veado encontrado em área urbana e capturado pelo CCZ. O
veado foi atropelado, mas provavelmente serão os maus tratos que sofreu que o
fará temer os humanos para o resto de sua vida. Após o atropelamento, esse
animal ficou impossibilitado de correr, e essa situação foi o começo de seu
tormento. Um grupo de pessoas (de acordo com minha mãe, adolescentes entre 12 e
16 anos) violentou o veado com chutes, pontapés e pauladas, até o animal quase
perder a vida. Foi por muito pouco que isso não aconteceu, para falar a
verdade.
Após a sensação de terror e pena
que me assolou, passei a pensar mais nessa situação, e me dei conta de que esse
é apenas um caso extremado (será?) de fatos que ocorrem frequentemente em nosso
cotidiano. A violência, seja ela simbólica ou física, é a base de nossas
relações. Ela é um instrumento de troca, de acordos, de expressão, e inclusive
um elemento de entretenimento (UFC, etc.). Ela está em todos os lugares, desde
os microespaços familiares, até a vida pública e política. Compõe a estrutura
dos grupos dominantes e oprimidos. Não raro, é possível notá-la inclusive no discurso de movimentos que lutam por questões raciais, feministas e dos LGBT’s. Conclusão: a violência é um dado, é um fato,
é uma realidade da qual não se pode fugir. Mas isso se choca com minha visão de
que o que somos é fruto do nosso ambiente sócio-cultural. Seria a crueldade
humana o prova mais básica de que somos muito mais influenciados por questões
de ordem natural, e não por razões sócio-culturais?
Para pensar isso, me lembrei de
dois fatos. O primeiro é um fato que nem precisa de fundamentações mais
aprofundadas: a violência é a forma mais fácil de se conseguir o que queremos.
Isso responderia muito do porquê de nossa sociedade ser tão violenta. Mas é
logo posta a baixo se pensarmos que em várias vezes (para não dizer na maioria
das vezes) a manifestação da crueldade humana ocorre em contextos em que não há
um objeto claro a ser ganho, em que não há recompensas. Nesses contextos, a
violência parece ser um fim em si mesma, e contraria, em partes, ao primeiro
fato que citei.
O segundo fato exige uma maior
explicação: nossa sociedade tem por base a cultura judaico-cristã, e esse fato
nos atinge de forma quase fisiológica, de uma maneira tão intrínseca, que um
ateu de berço é capaz, a qualquer momento, ter um discurso muito semelhante com
qualquer discurso cristão. E não apenas discurso, mas condutas também são
influenciadas por essa cultura que nos cerca e, por essa razão, nos cria e nos
molda.
Eu digo que esse é um fato capaz
de explicar a crueldade humana manifestada por meio da violência simbólica e
física da seguinte maneira: é possível afirmar que até os momentos anteriores à
ascensão cristã, a violência era um meio para se atingir um fim. Romanos,
gregos, “bárbaros”, enfim, todas as populações antigas baseadas num sistema que
podemos caracterizar como tanatopolítica (políticas que controlam a morte)
utilizavam a violência como uma forma de conquistar territórios, riquezas e
escravos. Dessa forma, não raro, todos esses povos eram povos guerreiros. Há
quem diga que essa é a prova definitiva de que eles eram povos mais cruéis que
nós, um povo que vê na guerra uma exceção, e não uma regra. Na minha não
humilde opinião, penso que o contrário é válido. Seria injustiça com esses
povos chamá-los de cruéis. Que eram violentos, isso não há dúvidas. Mas cruéis,
no sentido mais perverso do termo, isso certamente não. A crueldade, mesmo
quando manifestada no discurso como um desejo de extermínio do outro, só foi possível
por meio da ascensão da cultura cristã.
Há, no Antigo Testamento, uma
passagem no mínimo interessante:
E
disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e
domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e
sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. (Gênesis
1:26)
Esse trecho da bíblia, que é
lido por cristãos, judeus e mulçumanos, foi talvez o marco para a criação de um
pensamento antropocêntrico, que surgiria apenas ao fim da Idade Média. Isso
porque esse trecho nos deu a possibilidade de adorarmos não mais figuras
imaginárias, como figuras cosmológicas (o Sol, a Lua, a Natureza, para algumas
culturas), antropomórficas (Rá, Seth, Anúbis, na cultura egípcia) ou
humanizadas, mas exageradamente distanciadas da realidade devido a seus poderes
(Zeus, Afrodite, Hades, na cultura grega clássica). O versículo vinte seis do
primeiro capítulo de Gênesis nos permitiu a adoração de nós mesmos, algo nunca
visto antes do advento da cultura cristã, a não ser pelos filósofos gregos.
Mas além da adoração de nós
mesmos, esse trecho da Bíblia nos possibilitou a nossa comparação com Deus, e
sendo esse deus um ser visto como figura de onipotência, foi natural que nos enxergássemos
como centros do universo. Assim, o Estado teocrático cristão foi um veneno para
si mesmo, e pôs o ser humano como figura de destaque em todas as áreas,
desprezando ou desconhecendo a insignificância desse ser humano quando
comparado com a própria natureza e o universo como um todo.
Esse caráter quase essencial da
cultura cristã, que ao contrário do que acredita, cultua muito mais o homem do
que Deus (dando razão à piada “E o Homem criou deus à sua imagem e semelhança”),
foi muito mais reforçada com o advento da globalização do que extinta. Podemos
não ser mais religiosos, podemos até ter matado Deus (como nos lembra Nietszche),
mas isso está longe de ser razão para nos tirar o presente que a cultura
judaico-cristã nos deu. Somos deuses, e agora mais do que nunca. O deus
superior dava limites ao nosso orgulho exacerbado. Hoje, para continuar em
cena, ele precisa sempre nos dizer que estamos sempre certos, e desde então
malafaias, felicianos, hitlers e tantos outros mais se tornaram cada vez mais
comuns.
Somos onipotentes, e por sermos
onipotentes, nossa crueldade perversa não precisa de razões para surgir. Não
envolve mais recompensas. Ela estrutura nossas vidas. Estamos acima de todas as
coisas, e por isso tudo aquilo que não é a nossa imagem e semelhança deve se
curvar aos nossos caprichos, ou como diria Caetano Veloso, “(...) é que Narciso
acha feio o que não é espelho”. Ora, a realidade nos prova a cada momento que
não somos superiores de “bosta nenhuma”. A realidade nos mostra dia-após-dia o
quanto somos insignificantes. Mas não foi isso que aprendemos. Não é isso que
nossa cultura nos diz. Somos à imagem e semelhança de Deus, e como ele já nem
existe mais como instância reguladora, nós somos os novos deuses, cabendo a
esse deus arcaico e fora de moda aparecer apenas para validar nossos atos e
discursos.
Assim, cá estamos, com toda a
nossa crueldade perversa, posando de deuses e punindo tudo aquilo que é
diferente de nós. A irmandade, discurso falido do cristianismo, nunca foi
seguida a risca. Antes serviu para criar ódio entre grupos diferentes do que
para nos unir. Assim, não é de se admirar eventos como o veado que foi
literalmente espancado pelos adolescentes, ou qualquer outro caso. Ser Deus nos
fez sermos tão intolerantes quanto o personagem bíblico.
Não arrisco dar uma solução a
isso. Que a violência é estrutural, isso eu não duvido; que a crueldade é uma
característica perversa que nos molda desde o berço, isso também não duvido.
Mas meu pessimismo natural não me impede de acreditar que podemos ainda atingir
uma cultura de paz, de tolerância. Sei que é complexo se chegar a esse estado,
mas penso que se voltarmos a nos dar conta da nossa insignificância, talvez
sejamos capazes de aceitar tudo o que é diferente de nós, e paremos de ser uma
mistura perversa de Narciso com o deus grego Ares.