quarta-feira, 1 de abril de 2015

Ensaio sobre a crueldade humana

O assunto daqui de casa é, na maioria das vezes, os animais. A razão disso é o fato de minha mãe trabalhar como faxineira no Centro de Controle de Zoonoses (CCZ). Também não é raro ela relatar casos de animais mal tratados que aparecem na instituição. Nosso amor por animais é tanto, que um dos gatos que possuímos atualmente teve sua perna traseira esquerda arrancada/cortada de maneira brutal quando ainda era filhote. Minha mãe (e o resto da família) teve pena do animal, e resolveu adotá-lo. Hoje, esse gato ainda é desconfiado em relação às pessoas, mas é amoroso com todos nós.
Nessa semana, minha mãe nos contou o caso de um veado encontrado em área urbana e capturado pelo CCZ. O veado foi atropelado, mas provavelmente serão os maus tratos que sofreu que o fará temer os humanos para o resto de sua vida. Após o atropelamento, esse animal ficou impossibilitado de correr, e essa situação foi o começo de seu tormento. Um grupo de pessoas (de acordo com minha mãe, adolescentes entre 12 e 16 anos) violentou o veado com chutes, pontapés e pauladas, até o animal quase perder a vida. Foi por muito pouco que isso não aconteceu, para falar a verdade.
Após a sensação de terror e pena que me assolou, passei a pensar mais nessa situação, e me dei conta de que esse é apenas um caso extremado (será?) de fatos que ocorrem frequentemente em nosso cotidiano. A violência, seja ela simbólica ou física, é a base de nossas relações. Ela é um instrumento de troca, de acordos, de expressão, e inclusive um elemento de entretenimento (UFC, etc.). Ela está em todos os lugares, desde os microespaços familiares, até a vida pública e política. Compõe a estrutura dos grupos dominantes e oprimidos. Não raro, é possível notá-la inclusive no discurso de movimentos que lutam por questões raciais, feministas e dos LGBT’s. Conclusão: a violência é um dado, é um fato, é uma realidade da qual não se pode fugir. Mas isso se choca com minha visão de que o que somos é fruto do nosso ambiente sócio-cultural. Seria a crueldade humana o prova mais básica de que somos muito mais influenciados por questões de ordem natural, e não por razões sócio-culturais?
Para pensar isso, me lembrei de dois fatos. O primeiro é um fato que nem precisa de fundamentações mais aprofundadas: a violência é a forma mais fácil de se conseguir o que queremos. Isso responderia muito do porquê de nossa sociedade ser tão violenta. Mas é logo posta a baixo se pensarmos que em várias vezes (para não dizer na maioria das vezes) a manifestação da crueldade humana ocorre em contextos em que não há um objeto claro a ser ganho, em que não há recompensas. Nesses contextos, a violência parece ser um fim em si mesma, e contraria, em partes, ao primeiro fato que citei.
O segundo fato exige uma maior explicação: nossa sociedade tem por base a cultura judaico-cristã, e esse fato nos atinge de forma quase fisiológica, de uma maneira tão intrínseca, que um ateu de berço é capaz, a qualquer momento, ter um discurso muito semelhante com qualquer discurso cristão. E não apenas discurso, mas condutas também são influenciadas por essa cultura que nos cerca e, por essa razão, nos cria e nos molda.
Eu digo que esse é um fato capaz de explicar a crueldade humana manifestada por meio da violência simbólica e física da seguinte maneira: é possível afirmar que até os momentos anteriores à ascensão cristã, a violência era um meio para se atingir um fim. Romanos, gregos, “bárbaros”, enfim, todas as populações antigas baseadas num sistema que podemos caracterizar como tanatopolítica (políticas que controlam a morte) utilizavam a violência como uma forma de conquistar territórios, riquezas e escravos. Dessa forma, não raro, todos esses povos eram povos guerreiros. Há quem diga que essa é a prova definitiva de que eles eram povos mais cruéis que nós, um povo que vê na guerra uma exceção, e não uma regra. Na minha não humilde opinião, penso que o contrário é válido. Seria injustiça com esses povos chamá-los de cruéis. Que eram violentos, isso não há dúvidas. Mas cruéis, no sentido mais perverso do termo, isso certamente não. A crueldade, mesmo quando manifestada no discurso como um desejo de extermínio do outro, só foi possível por meio da ascensão da cultura cristã.
Há, no Antigo Testamento, uma passagem no mínimo interessante:
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. (Gênesis 1:26)
Esse trecho da bíblia, que é lido por cristãos, judeus e mulçumanos, foi talvez o marco para a criação de um pensamento antropocêntrico, que surgiria apenas ao fim da Idade Média. Isso porque esse trecho nos deu a possibilidade de adorarmos não mais figuras imaginárias, como figuras cosmológicas (o Sol, a Lua, a Natureza, para algumas culturas), antropomórficas (Rá, Seth, Anúbis, na cultura egípcia) ou humanizadas, mas exageradamente distanciadas da realidade devido a seus poderes (Zeus, Afrodite, Hades, na cultura grega clássica). O versículo vinte seis do primeiro capítulo de Gênesis nos permitiu a adoração de nós mesmos, algo nunca visto antes do advento da cultura cristã, a não ser pelos filósofos gregos.  
Mas além da adoração de nós mesmos, esse trecho da Bíblia nos possibilitou a nossa comparação com Deus, e sendo esse deus um ser visto como figura de onipotência, foi natural que nos enxergássemos como centros do universo. Assim, o Estado teocrático cristão foi um veneno para si mesmo, e pôs o ser humano como figura de destaque em todas as áreas, desprezando ou desconhecendo a insignificância desse ser humano quando comparado com a própria natureza e o universo como um todo.
Esse caráter quase essencial da cultura cristã, que ao contrário do que acredita, cultua muito mais o homem do que Deus (dando razão à piada “E o Homem criou deus à sua imagem e semelhança”), foi muito mais reforçada com o advento da globalização do que extinta. Podemos não ser mais religiosos, podemos até ter matado Deus (como nos lembra Nietszche), mas isso está longe de ser razão para nos tirar o presente que a cultura judaico-cristã nos deu. Somos deuses, e agora mais do que nunca. O deus superior dava limites ao nosso orgulho exacerbado. Hoje, para continuar em cena, ele precisa sempre nos dizer que estamos sempre certos, e desde então malafaias, felicianos, hitlers e tantos outros mais se tornaram cada vez mais comuns.
Somos onipotentes, e por sermos onipotentes, nossa crueldade perversa não precisa de razões para surgir. Não envolve mais recompensas. Ela estrutura nossas vidas. Estamos acima de todas as coisas, e por isso tudo aquilo que não é a nossa imagem e semelhança deve se curvar aos nossos caprichos, ou como diria Caetano Veloso, “(...) é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Ora, a realidade nos prova a cada momento que não somos superiores de “bosta nenhuma”. A realidade nos mostra dia-após-dia o quanto somos insignificantes. Mas não foi isso que aprendemos. Não é isso que nossa cultura nos diz. Somos à imagem e semelhança de Deus, e como ele já nem existe mais como instância reguladora, nós somos os novos deuses, cabendo a esse deus arcaico e fora de moda aparecer apenas para validar nossos atos e discursos.
Assim, cá estamos, com toda a nossa crueldade perversa, posando de deuses e punindo tudo aquilo que é diferente de nós. A irmandade, discurso falido do cristianismo, nunca foi seguida a risca. Antes serviu para criar ódio entre grupos diferentes do que para nos unir. Assim, não é de se admirar eventos como o veado que foi literalmente espancado pelos adolescentes, ou qualquer outro caso. Ser Deus nos fez sermos tão intolerantes quanto o personagem bíblico.
Não arrisco dar uma solução a isso. Que a violência é estrutural, isso eu não duvido; que a crueldade é uma característica perversa que nos molda desde o berço, isso também não duvido. Mas meu pessimismo natural não me impede de acreditar que podemos ainda atingir uma cultura de paz, de tolerância. Sei que é complexo se chegar a esse estado, mas penso que se voltarmos a nos dar conta da nossa insignificância, talvez sejamos capazes de aceitar tudo o que é diferente de nós, e paremos de ser uma mistura perversa de Narciso com o deus grego Ares. 

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