Imaginem o
seguinte evento: tarde chuvosa de uma quarta-feira agradavelmente tediosa,
solidão de seu belo quarto, notebook conectado à internet, facebook. Parecem
que são coisas que se atraem mutuamente e automaticamente. Uma tarde dedicada ao ócio ininterrupto e à suspensão de qualquer pensamento mais complexo e que fuja do simples "estou com fome". Pois bem, você
decide se conectar a essa rede social tão populosa, e larga seu livro de lado.
Mas eis que por ironia do destino, o primeiro “post” que você vê no facebook é
esse:
Você queria
apenas descansar, espairecer, livrar sua cabeça dos pensamentos esporadicamente
críticos e contundentes sobre tudo e sobre todos. Mas essa imagem não deixa.
Essa imagem teima em ficar na sua cabeça, pairando sobre seus pensamentos, te
seguindo como um fantasma invisível, mas barulhento. Pronto! Você está em mais
um momento “sou crítico”.
Tal imagem
evidencia de forma sutil e paradoxalmente violenta a visão que temos hoje em
dia dos corpos gordos, da gordura e de tudo aquilo que é flácido. Para os
desavisados, eu traduzo que mensagem é essa: ser gordo é ser infeliz; é um peso
(uso essa palavra aqui em seu sentido metafórico, ok?); uma doença que é
preciso se livrar, ou melhor, se curar. Só que mais do que isso, a imagem toca
num ponto fundamental sobre o assunto: a gordura esconde nosso verdadeiro ser.
Quer um
exemplo claro disso? Me diga em 5 segundos no mínimo o nome de uma pessoa que
diz “sou gordo(a)” no lugar de “estou gordo(a)”. Difícil? Ok, mais 10 segundos.
Ainda não conseguiu? Mais 30 segundos. Precisam de mais tempo? Tudo bem, pense
com calma sem se preocupar com o tempo. Nada ainda? Pois bem, notaram como a
gordura é tratada como um “estado”, e não como “o ser”. Isso é perturbador se
notarmos que ninguém fala “estou magro”, mas sim “sou magro”. Qual a diferença?
A diferença reside no fardo que todo esse tecido adiposo ganhou em nossa
cultura: mais do que um tecido que pesa em termos de quilogramas, é também um
tecido que pesa no nosso emocional. É por isso que, não raro, a palavra “estou
gordo(a)” ganha denotativos próprios dos sentimentos. Ou seja, “estou gordo(a)”
é um sentimento que praticamente se equivale ao “estou triste”, ou “estou
frustrado(a)”, ou “estou desesperado(a)”.
Quero deixar
claro aqui que não acredito que a personalidade, a identidade, o “ser” de uma
pessoa sejam algo eterno e imutável. Pelo contrário, sou a favor dos que dizem
que estamos em eterna “metamorfose ambulante”. E apesar disso nos remeter a “estados
do ser”, eu penso que isso não se trata de estados, mas sim, de formas de ser
passageiras. Somos o que somos temporariamente, mas ainda assim somos. Hoje eu
sou estudante de Psicologia, amanhã serei psicólogo. Mas a constatação de que
há essa mudança não retira o fato de que eu sou (mesmo que só hoje) um
estudante. No entanto, com a gordura não agimos dessa forma. É inadmissível que
ela faça parte do nosso “ser”. Ela sim pode e deve ser considerada um “estado”
nosso, algo passageiro e que não interfere em nada no nosso “ser”.
A imagem
anteriormente citada resume de forma precisa essa imagem que temos do corpo
gordo como um invólucro que esconde nosso ser. A autora Maria Marzano-Parisoli,
autora do livro Pensar o Corpo (2004), coloca bem a representação que temos dos
corpos gordos e flácidos: estes remetem a uma falta de controle sobre nossas
vidas, e como tal, também remetem a uma falha de caráter horrível. Ora, se é
essa a representação do corpo gordo que temos, obviamente não será essa a
representação que iríamos querer como constituintes do nosso “ser”! Quem quer
ser considerando como um frouxo, alguém que não tem controle sobre a própria
vida? Quem?
“Somos todos
magros, perfeitos e sadios! É nosso corpo que, por maldade do destino, nos
esconde do mundo!”. Esse é o grito de ordem, como forma de nos salvar dessa
representação cruel que dia após dia nos é colocada “guela a baixo”. Por isso,
depois que vi tal imagem e me choquei com ela, passei a compreender a pessoa
que o postou. Em uma sociedade que cada vez mais rotula e estigmatiza, é
necessário que nós, num ato de defesa, passemos a nos referir àquelas
características indesejadas como um “estado” nosso, e não como àquilo que constitui
o nosso “ser”. Ou como a própria imagem diz, “Sai desse corpo que não te
pertence”.
Ps. 1: Tentei aqui fazer uma
leitura mais subjetiva e individualista sobre o tema “corpos gordos”, ou seja,
os reflexos que as representações sobre esse corpo têm sobre nossa
individualidade. Mas ainda pretendo escrever sobre as incoerências dessas
representações sociais que temos.
Ps. 2: O livro citado (Pensar o
Corpo) terá em breve uma resenha elaborada por mim.
Ps. 3: Eu sou gordo.

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