domingo, 27 de outubro de 2013

Sai desse corpo que não te pertence!

Imaginem o seguinte evento: tarde chuvosa de uma quarta-feira agradavelmente tediosa, solidão de seu belo quarto, notebook conectado à internet, facebook. Parecem que são coisas que se atraem mutuamente e automaticamente. Uma tarde dedicada ao ócio ininterrupto e à suspensão de qualquer pensamento mais complexo e que fuja do simples "estou com fome". Pois bem, você decide se conectar a essa rede social tão populosa, e larga seu livro de lado. Mas eis que por ironia do destino, o primeiro “post” que você vê no facebook é esse:


Você queria apenas descansar, espairecer, livrar sua cabeça dos pensamentos esporadicamente críticos e contundentes sobre tudo e sobre todos. Mas essa imagem não deixa. Essa imagem teima em ficar na sua cabeça, pairando sobre seus pensamentos, te seguindo como um fantasma invisível, mas barulhento. Pronto! Você está em mais um momento “sou crítico”.
Tal imagem evidencia de forma sutil e paradoxalmente violenta a visão que temos hoje em dia dos corpos gordos, da gordura e de tudo aquilo que é flácido. Para os desavisados, eu traduzo que mensagem é essa: ser gordo é ser infeliz; é um peso (uso essa palavra aqui em seu sentido metafórico, ok?); uma doença que é preciso se livrar, ou melhor, se curar. Só que mais do que isso, a imagem toca num ponto fundamental sobre o assunto: a gordura esconde nosso verdadeiro ser.
Quer um exemplo claro disso? Me diga em 5 segundos no mínimo o nome de uma pessoa que diz “sou gordo(a)” no lugar de “estou gordo(a)”. Difícil? Ok, mais 10 segundos. Ainda não conseguiu? Mais 30 segundos. Precisam de mais tempo? Tudo bem, pense com calma sem se preocupar com o tempo. Nada ainda? Pois bem, notaram como a gordura é tratada como um “estado”, e não como “o ser”. Isso é perturbador se notarmos que ninguém fala “estou magro”, mas sim “sou magro”. Qual a diferença? A diferença reside no fardo que todo esse tecido adiposo ganhou em nossa cultura: mais do que um tecido que pesa em termos de quilogramas, é também um tecido que pesa no nosso emocional. É por isso que, não raro, a palavra “estou gordo(a)” ganha denotativos próprios dos sentimentos. Ou seja, “estou gordo(a)” é um sentimento que praticamente se equivale ao “estou triste”, ou “estou frustrado(a)”, ou “estou desesperado(a)”.
Quero deixar claro aqui que não acredito que a personalidade, a identidade, o “ser” de uma pessoa sejam algo eterno e imutável. Pelo contrário, sou a favor dos que dizem que estamos em eterna “metamorfose ambulante”. E apesar disso nos remeter a “estados do ser”, eu penso que isso não se trata de estados, mas sim, de formas de ser passageiras. Somos o que somos temporariamente, mas ainda assim somos. Hoje eu sou estudante de Psicologia, amanhã serei psicólogo. Mas a constatação de que há essa mudança não retira o fato de que eu sou (mesmo que só hoje) um estudante. No entanto, com a gordura não agimos dessa forma. É inadmissível que ela faça parte do nosso “ser”. Ela sim pode e deve ser considerada um “estado” nosso, algo passageiro e que não interfere em nada no nosso “ser”.
A imagem anteriormente citada resume de forma precisa essa imagem que temos do corpo gordo como um invólucro que esconde nosso ser. A autora Maria Marzano-Parisoli, autora do livro Pensar o Corpo (2004), coloca bem a representação que temos dos corpos gordos e flácidos: estes remetem a uma falta de controle sobre nossas vidas, e como tal, também remetem a uma falha de caráter horrível. Ora, se é essa a representação do corpo gordo que temos, obviamente não será essa a representação que iríamos querer como constituintes do nosso “ser”! Quem quer ser considerando como um frouxo, alguém que não tem controle sobre a própria vida? Quem?
“Somos todos magros, perfeitos e sadios! É nosso corpo que, por maldade do destino, nos esconde do mundo!”. Esse é o grito de ordem, como forma de nos salvar dessa representação cruel que dia após dia nos é colocada “guela a baixo”. Por isso, depois que vi tal imagem e me choquei com ela, passei a compreender a pessoa que o postou. Em uma sociedade que cada vez mais rotula e estigmatiza, é necessário que nós, num ato de defesa, passemos a nos referir àquelas características indesejadas como um “estado” nosso, e não como àquilo que constitui o nosso “ser”. Ou como a própria imagem diz, “Sai desse corpo que não te pertence”.


Ps. 1: Tentei aqui fazer uma leitura mais subjetiva e individualista sobre o tema “corpos gordos”, ou seja, os reflexos que as representações sobre esse corpo têm sobre nossa individualidade. Mas ainda pretendo escrever sobre as incoerências dessas representações sociais que temos.
Ps. 2: O livro citado (Pensar o Corpo) terá em breve uma resenha elaborada por mim.
Ps. 3: Eu sou gordo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário