segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Pele negra ou parda? Boné de aba reta? Ouve MC Daleste? Fora daqui!

Ter acesso á internet foi, para mim, uma dádiva e uma maldição. Foi uma dádiva porque ter contato com a informação foi algo maravilhoso: posso opinar sobre assuntos que ocorrem do outro lado do mundo, sem que eu precise sair de casa. Mas também foi, como já disse, uma maldição. Com a internet, notei o quanto o meu povo caipira é civilizado, e o quanto o povo civilizado é bárbaro. Sim, bárbaro. Bárbaro no sentido mais agressivo e hipócrita que esse termo possa vir a ter.
Tal barbaridade é, geralmente, velada. Aparece as vezes de maneira isolada ganha força na medida que ganha adeptos, mas logo se esvai quando a empatia dá seu grito desesperado (mas sufocado). No entanto, há momentos em que tal empatia simplesmente não surge. Não é sufocada por que não há a presença de nada a ser sufocado. E quando isso ocorre, a barbaridade, na sua forma mais hipócrita possível, toma conta. Isso ocorreu, por exemplo, no natal de 2013. Citarei esse evento não por ser especial ou único, mas sim, por que sua repercussão na voz do povo (erroneamente comparada com a voz de Deus) foi de um total absurdo que poderia até ser considerada uma piada típica do A Praça é Nossa, se não fosse algo tão trágico.
Trata-se do triste caso dos “rolezinhos” em um shopping de São Paulo. É preciso antes definir o que é o rolezinho, ou simplesmente rolé. Trata-se de um encontro entre jovens com o intuito de se divertir (zoar), paquerar e beijar (dar uns pega). Nada muito diferente dos famosos encontros entre jovens provindos das classes um pouco mais abastadas que saem para se divertir. A diferença se encontra muito mais na forma do que na estrutura do evento. No lugar de jovens brancos da classe média, jovens negros e pardos da favela. No lugar de hits da música sertaneja, músicas de funk ostentação, cuja figura de maior destaque é o falecido MC Daleste. E por fim, no lugar de roupas de marca, roupas de origens mais humildes ou que estão fora da moda jovem masculina e feminina vigente.
Ou seja, nada muito diferente do que estamos acostumados. Pelo menos, é o que nossa razão nos diz, mas ela, alheia a espaços de consumo em massa, resolveu não aparecer no Shopping Internacional de Guarulhos. Lojistas abismados e assustados com aqueles seres que nunca ousaram ultrapassar as muralhas do consumo (vulgo “portas eletrônicas dos shoppings”) chamaram a polícia que, atendendo ao clamor dos consumidores que lá estavam, levaram aproximadamente 20 desses jovens à delegacia, todos que aparentavam o “horripilante e assustador” visual de funkeiro. Não houve roubo, nem porte de drogas e muito menos destruição de patrimônio privado. Mas ainda assim, consumidores, lojistas e policiais trataram tais jovens como bandidos perigosos, que merecem uns tapas da polícia mesmo. Tal situação se estendeu, depois para outros shoppings, que recorreram à polícia para cuidar o espaço e vistoriar todos aqueles que apresentassem um visual suspeito, ou seja, aqueles de boné de aba reta, pele parda ou negra e apreciadores de funk.
Mas vejam, eu disse que esse evento não é único, e nem especial, justamente por que ele está presente em nossa realidade cotidianamente. Eu mesmo, pardo de nascença, cabelos desgrenhados por natureza e possuidor de pouca renda desde sempre, já recebi olhares duvidosos de quem, acreditando ser dono simbólico de um espaço antes frequentados apenas por quem tinha poder capital, me julgam como uma ameaça à ordem e deslocado num espaço que não foi criado para mim. Ou seja, não é um assunto novo dizer que shopping não foi feito pra gente pobre. E isso na minha cidade é tão forte, que meus amigos e conhecidos transformam um passeio no shopping num dos maiores eventos sociais de suas vidas, digno de roupas novas ou, pelo menos, pouco estragadas. Esconder a pobreza é lei nas visitas ao shopping de minha cidade.
A especificidade é, novamente, a repercussão. Comentários de ódio por todos os lados da classe média e honrarias aos polícias que “meteram o cacete no bandidinho” me fizeram pensar que estava eu no meio de cães carniceiros (tudo isso visto apenas nas redes sociais). Disso tudo, duas coisas me assustam.
A primeira é sobre o poder que a população quer dar aos policias. Exigem deles não mais apenas a proteção, mas também, a previsão do futuro. Além disso, exigem também dos polícias uma posição mais agressiva, com a intenção de “cortar o mal pela raiz”. Ora, sabemos que previsões de futuro não existem. No que diz respeito ao futuro, temos ao nosso lado apenas as probabilidades, que não são certeiras e absolutas. Com ações guiadas por essa previsibilidade do futuro e concluídas de forma agressiva, criamos um palco semelhante à Ditadura Militar, onde a polícia agredia sem cerimônia aqueles que pareciam ser contrários ao sistema governamental vigente.
A segunda coisa que me assusta é visível delimitação de espaços para pobres e espaços para ricos, tudo bem regulamentado na lei. Veja bem: uma lei segregacionista pode ser considerada justa? Se temos discriminação hoje, as coisas podem melhorar se isso for estabelecido por lei? Dificilmente... Mas é o que se clama hoje. Em comentários do tipo “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este” nota-se esse desejo por delimitação de espaços, por construções de muros e separação de “gente de bem” daqueles considerados a escória da sociedade.

Não me surpreendo com a ação da polícia. Sou crente de que a polícia brasileira tem um conhecimento bem raso sobre o que é e como garantir os Direitos Humanos. Mas sinceramente me surpreendeu a reação dos cidadãos de bem. Sempre digo que o próprio termo “cidadão de bem” ou “gente de bem” são termos, na verdade, irônicos, pois não a nada de bom em quem clama por vingança (sabe-se Deus sobre o que) e não por justiça. Mas esses eventos solidificaram minhas ideias: somos bárbaros que, incapazes de fazer sangrar, queremos institucionalizar a violência. Nosso foco agora são os favelados funkeiros. Conseguimos lidar bem com eles enquanto não invadiam nosso espaço. Mas ousaram atravessar as muralhas e se jogaram na cova dos leões. Serão implacavelmente punidos por tais atos. Inicialmente, de forma institucionalizada: levarão cacetadas na cabeça, chutes, ofensas verbais e serão “convidados” a se retirarem do recinto. Depois, sofrerão com o ódio dos benevolentes: olhares fuziladores, comentários diretos e indiretos geralmente ofensivos e mais discriminação. Tudo para aprenderem que não se deve entrar num shopping vestido no visual típico de funkeiros e ouvindo MC Daleste. Já é bondade demais aceitarem “gente de cor” entrar nesses espaços, então, nada de baderna. E tudo isso não é uma previsão, e nem uma probabilidade. É, infelizmente, uma apenas descrição.

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