Ter acesso á internet foi, para
mim, uma dádiva e uma maldição. Foi uma dádiva porque ter contato com a
informação foi algo maravilhoso: posso opinar sobre assuntos que ocorrem do
outro lado do mundo, sem que eu precise sair de casa. Mas também foi, como já
disse, uma maldição. Com a internet, notei o quanto o meu povo caipira é
civilizado, e o quanto o povo civilizado é bárbaro. Sim, bárbaro. Bárbaro no
sentido mais agressivo e hipócrita que esse termo possa vir a ter.
Tal barbaridade é, geralmente, velada.
Aparece as vezes de maneira isolada ganha força na medida que ganha adeptos,
mas logo se esvai quando a empatia dá seu grito desesperado (mas sufocado). No
entanto, há momentos em que tal empatia simplesmente não surge. Não é sufocada
por que não há a presença de nada a ser sufocado. E quando isso ocorre, a
barbaridade, na sua forma mais hipócrita possível, toma conta. Isso ocorreu,
por exemplo, no natal de 2013. Citarei esse evento não por ser especial ou
único, mas sim, por que sua repercussão na voz do povo (erroneamente comparada
com a voz de Deus) foi de um total absurdo que poderia até ser considerada uma
piada típica do A Praça é Nossa, se não fosse algo tão trágico.
Trata-se do triste caso dos “rolezinhos”
em um shopping de São Paulo. É preciso antes definir o que é o rolezinho, ou
simplesmente rolé. Trata-se de um encontro entre jovens com o intuito de se
divertir (zoar), paquerar e beijar (dar uns pega). Nada muito diferente dos famosos
encontros entre jovens provindos das classes um pouco mais abastadas que saem
para se divertir. A diferença se encontra muito mais na forma do que na
estrutura do evento. No lugar de jovens brancos da classe média, jovens negros
e pardos da favela. No lugar de hits da música sertaneja, músicas de funk
ostentação, cuja figura de maior destaque é o falecido MC Daleste. E por fim,
no lugar de roupas de marca, roupas de origens mais humildes ou que estão fora
da moda jovem masculina e feminina vigente.
Ou seja, nada muito diferente do
que estamos acostumados. Pelo menos, é o que nossa razão nos diz, mas ela,
alheia a espaços de consumo em massa, resolveu não aparecer no Shopping
Internacional de Guarulhos. Lojistas abismados e assustados com aqueles seres
que nunca ousaram ultrapassar as muralhas do consumo (vulgo “portas eletrônicas
dos shoppings”) chamaram a polícia que, atendendo ao clamor dos consumidores
que lá estavam, levaram aproximadamente 20 desses jovens à delegacia, todos que
aparentavam o “horripilante e assustador” visual de funkeiro. Não houve roubo,
nem porte de drogas e muito menos destruição de patrimônio privado. Mas ainda
assim, consumidores, lojistas e policiais trataram tais jovens como bandidos
perigosos, que merecem uns tapas da polícia mesmo. Tal situação se estendeu,
depois para outros shoppings, que recorreram à polícia para cuidar o espaço e
vistoriar todos aqueles que apresentassem um visual suspeito, ou seja, aqueles
de boné de aba reta, pele parda ou negra e apreciadores de funk.
Mas vejam, eu disse que esse
evento não é único, e nem especial, justamente por que ele está presente em
nossa realidade cotidianamente. Eu mesmo, pardo de nascença, cabelos
desgrenhados por natureza e possuidor de pouca renda desde sempre, já recebi
olhares duvidosos de quem, acreditando ser dono simbólico de um espaço antes frequentados
apenas por quem tinha poder capital, me julgam como uma ameaça à ordem e
deslocado num espaço que não foi criado para mim. Ou seja, não é um assunto
novo dizer que shopping não foi feito pra gente pobre. E isso na minha cidade é
tão forte, que meus amigos e conhecidos transformam um passeio no shopping num
dos maiores eventos sociais de suas vidas, digno de roupas novas ou, pelo
menos, pouco estragadas. Esconder a pobreza é lei nas visitas ao shopping de
minha cidade.
A especificidade é, novamente, a
repercussão. Comentários de ódio por todos os lados da classe média e honrarias
aos polícias que “meteram o cacete no bandidinho” me fizeram pensar que estava
eu no meio de cães carniceiros (tudo isso visto apenas nas redes sociais).
Disso tudo, duas coisas me assustam.
A primeira é sobre o poder que a
população quer dar aos policias. Exigem deles não mais apenas a proteção, mas
também, a previsão do futuro. Além disso, exigem também dos polícias uma
posição mais agressiva, com a intenção de “cortar o mal pela raiz”. Ora,
sabemos que previsões de futuro não existem. No que diz respeito ao futuro, temos
ao nosso lado apenas as probabilidades, que não são certeiras e absolutas. Com
ações guiadas por essa previsibilidade do futuro e concluídas de forma
agressiva, criamos um palco semelhante à Ditadura Militar, onde a polícia
agredia sem cerimônia aqueles que pareciam ser contrários ao sistema
governamental vigente.
A segunda coisa que me assusta é
visível delimitação de espaços para pobres e espaços para ricos, tudo bem
regulamentado na lei. Veja bem: uma lei segregacionista pode ser considerada
justa? Se temos discriminação hoje, as coisas podem melhorar se isso for
estabelecido por lei? Dificilmente... Mas é o que se clama hoje. Em comentários
do tipo “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”
nota-se esse desejo por delimitação de espaços, por construções de muros e
separação de “gente de bem” daqueles considerados a escória da sociedade.
Não me surpreendo com a ação da
polícia. Sou crente de que a polícia brasileira tem um conhecimento bem raso
sobre o que é e como garantir os Direitos Humanos. Mas sinceramente me
surpreendeu a reação dos cidadãos de bem. Sempre digo que o próprio termo “cidadão
de bem” ou “gente de bem” são termos, na verdade, irônicos, pois não a nada de
bom em quem clama por vingança (sabe-se Deus sobre o que) e não por justiça.
Mas esses eventos solidificaram minhas ideias: somos bárbaros que, incapazes de
fazer sangrar, queremos institucionalizar a violência. Nosso foco agora são os
favelados funkeiros. Conseguimos lidar bem com eles enquanto não invadiam nosso
espaço. Mas ousaram atravessar as muralhas e se jogaram na cova dos leões.
Serão implacavelmente punidos por tais atos. Inicialmente, de forma
institucionalizada: levarão cacetadas na cabeça, chutes, ofensas verbais e
serão “convidados” a se retirarem do recinto. Depois, sofrerão com o ódio dos benevolentes:
olhares fuziladores, comentários diretos e indiretos geralmente ofensivos e
mais discriminação. Tudo para aprenderem que não se deve entrar num shopping
vestido no visual típico de funkeiros e ouvindo MC Daleste. Já é bondade demais
aceitarem “gente de cor” entrar nesses espaços, então, nada de baderna. E tudo
isso não é uma previsão, e nem uma probabilidade. É, infelizmente, uma apenas descrição.
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