Sempre tive um certo desdém às
regras, mas desde cedo percebi que é algo inútil lutar contra todas elas.
Regras estão presentes na nossa vida desde nossa concepção até a morte. É
preciso que um óvulo e um espermatozoide se unam para que surja um humano. É obrigatória
a estadia de alguns meses no ventre materno até que estejamos aptos a viver no
ambiente natural. É regra respirarmos oxigênio sem cessar. É lei natural que
nos alimentemos rotineiramente. É obrigação nossa morrer depois de certo tempo.
Viver a regra parece ser a máxima que reúne os seres vivos e não vivos.
A regra em si não é boa nem má a
priori, ela apenas tem suas razões (nem sempre tão explícitas) para existir.
Mas, se idealizarmos um ser que apenas observa o mundo e toda a realidade como
um mero expectador totalmente fora dela, talvez ele imaginasse que o ser humano
não criaria mais (tantas) regras para si depois de tais obrigatoriedades
impostas naturalmente. Porém, não foi o que ocorreu. A obrigação de viver em
grupos impôs a necessidade da criação de regras de convivência que
possibilitassem, naquele momento, a segurança e sobrevivência individual.
O tiro, no entanto, saiu pela
culatra. Tais regras de convivência se tornaram cada vez mais complexas a ponto
de perder a sua razão de existência e a sua funcionalidade inicial. Não falamos
mais o “bom dia” como forma de desejar que o outro, como membro do meu bando,
tenha um dia bom, visto que qualquer ameaça ao “dia bom” a um membro do meu
bando é uma ameaça direta a mim. Desejamos o bom dia por pura e simples
obrigação. Também não elogiamos o outro por que a vitória dele exercerá um
impacto direto no meu bando, mas sim por que faz parte das novas regras de
competição demonstrar esse tipo de superioridade ilusória (“sou tão superior a
você, que sua vitória não me abala nem um pouco”).
Temos também as regras de amor
familiar. Hoje em dia é inconcebível imaginar uma mãe que não ame um filho,
mesmo que a regra natural da vida demonstre que, em outros animais, a mãe
destrate o filho e o expulse de seu ninho após certo tempo. Por isso penso que
laços familiares são, hoje, muito mais uma convenção imposta do que uma união
verdadeira entre pessoas que se amam. “Quer dizer então que membros familiares
na verdade não se amam?”. Ora, regras de convivência, mesmo quando forçadas,
não impedem o surgimento de laços afetivos. Dois irmãos, obrigados a viver no
mesmo teto, podem sim ser grandes confidentes um do outro. Ou seja, mesmo que a
regra “ame a todos de sua família” seja uma obrigação existente antes mesmo do
afeto recíproco entre familiares, isso não impede que eles criem um laço
afetivo genuíno.
E é nesse contexto que eu admiro
a amizade, quando esta é autêntica. Não existem as regras “Tenha um amigo!” ou
“Mantenha um amigo dessa forma!”. Somos amigos de alguém por que assim
desejamos e mantemos uma amizade por que queremos. A amizade representa,
talvez, algo de mais humano que possa existir no ser-humano. Ou melhor, algo de
mais libertário que possa existir no ideal de liberdade.
Como já deixei implícito, é
inadmissível que a Mãe Joana não ame o Filho Joãozinho. Menos assustador, mas
ainda digno de estranheza é o fato do Pai João não amar o Filho Joãozinho, ou
que o Irmão Pedrinho não goste de ficar perto do Irmão Joãozinho. Ser pai, mãe,
avós, irmãos, tios e sobrinhos não é algo que reside no âmbito da escolha. As
vezes nós aceitamos com alegria tais funções, outras vezes apenas nos
resignamos com essas nomenclaturas e suas obrigatoriedades. Mas a amizade não.
João não é obrigado a ser amigo de José, e nem tampouco a manter, depois de
iniciada, essa amizade para o resto de sua vida. Se um dia eles se tornarem
amigos, isso ocorrerá por simples escolha de ambos.
Confundimos, quando tentamos
conceituar, coleguismo com amizade. O coleguismo surge da união forçada entre
pessoas. Pode surgir no ambiente de trabalho, na sala de aula ou qualquer outro
espaço onde a interação não ocorre com familiares. Como a necessidade de
socialização é uma regra, o coleguismo torna-se uma regra conseqüente. Mas isso
também não impede o surgimento da amizade.
E é por isso que, diante de tudo
isso, não pude deixar de notar essa relação tão especial que pode surgir entre
duas ou mais pessoas, algo que demonstra a vontade sempre presente de sermos
livres. Sim, por que amizade é liberdade. Liberdade de ir e vir COM ou SEM o
amigo. Liberdade de não dar satisfações, mas também a liberdade de dar
satisfações. Até a linguagem, cheia de regras de semântica, perdem o seu valor
no meio do ambiente amistoso. Ou seja, temos a liberdade de xingar, com a
certeza de que o xingamento é muito mais um elogio do que uma ofensa naquele
momento específico. Um espaço onde um “filho da puta”, ou um “idiota” mesmo,
perdem seu sentido original e ganham um sentido de acordo com a vontade dos
membros daquele grupo amistoso é algo sensacional! Quer uma liberdade maior que
essa, de poder brincar com as palavras de forma despreocupada e despretensiosa?
Não, não há. Aliás, tal liberdade não se admite de forma algumas em outras
formas de interação e agrupamento social.
Parece milagre que, em um mundo
cheio de regras tal liberdade ainda exista. Talvez seja o contra-controle (by
Sidman), sempre presente diante de sinais claros de coerção. Não importa. O que
importa hoje é a prioridade que dou a certas funções. Me permiti ser muito mais
amigo da minha mãe do que filho. Tento me permitir ser mais amigo dos meus avós
do que neto. Quero ser mais amigo dos meus amigos do que colega. Se essa é a
única escolha que poderei fazer num mundo sedento de obrigatoriedades (ora naturais,
ora convencionais), que assim seja.
Mas é melhor tomar cuidado.
Liberdade diz respeito a responsabilidades, na medida em que você escolhe seus
atos. É por isso que a pergunta “por que você ama seu filho” gera
incompreensão, pois não posso justificar um ato que não depende de sua escolha.
Mas rotineiramente a pergunta “por que você ama seu amigo” pode surgir, e a
partir de então, você não mais terá as regras sociais como bode expiatório. E
então, eu te pergunto: por que você ama seu amigo? Caso não consiga responder
(ou ache a pergunta uma palhaçada), receio que não estamos mais falando de um
amigo seu, mas de um mero familiar, ou pior, um simples colega...







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