terça-feira, 10 de dezembro de 2013

“O Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder – o resultado da mistura entre literatura e filosofia

O livro “O Mundo de Sofia” era um livro que rondava meus anseios de leitura há um bom tempo. A primeira menção que me lembro de ter escutado sobre esse livro foi no meu Ensino Médio, quando minha professora de Filosofia (que por sinal, não era filósofa, apenas uma professora de História) indicou para minha sala a sua leitura, como uma leitura complementar. Porém, na época, minhas vontades em entrar no mundo da Filosofia ainda inexistiam. Tudo mudou, entretanto, quando uma amiga minha prometeu, há um ano atrás, emprestar o livro a mim. Tal promessa nunca foi cumprida, o que me fez tomar a decisão de pegá-lo emprestado na biblioteca da minha faculdade (UFGD). E não me arrependo.
O livro foi publicado em 1991 pelo norueguês Jostein Gaarder, e desde então, já foi traduzido para mais de 50 idiomas. Misturando literatura e filosofia, o livro em questão nos dá um apanhado geral sobre a história da filosofia e seus principais representantes de forma clara e objetiva, utilizando para isso exemplos fáceis de ser assimilados pelo leitor. Tudo isso dentro de um cenário de ficção e mistério muito instigante. A história se inicia com a jovem Sofia Amundsen, próxima de completar seus 15 anos, e que de forma misteriosa, passa a receber cartas de um professor de Filosofia chamado Alberto Knox. Assumindo a missão de ensinar à jovem Sofia os caminhos percorridos pela Filosofia, Alberto nos mostra desde a pré-história da Filosofia , onde o misticismo imperava, até o existencialismo de Sartre e as correntes filosóficas mais atuais.  Devido ao grande aprendizado filosófico que o livro traz, resolvi mostrar os assuntos desenvolvidos em cada capítulo, como os filósofos e sistemas filosóficos apresentados, bem como as perguntas fundamentais que cada era filosófica trouxe consigo. No entanto, o romance que se desenvolveu e deu um plano de fundo às aulas de Filosofia serão resguardados nas minhas considerações.
No capítulo primeiro, O Jardim do Éden: afinal de contas, algum dia alguma coisa tinha de ter surgido do nada..., temos o início da história, quando Sofia recebe dois cartões postais (além de um que era direcionado a uma jovem chamada Hilde Knag), onde duas perguntas eram feitas: “De onde vem o mundo” e “Quem é você”. Tais perguntas deixam Sofia perplexa. Na escola, ela aprendera que o mundo foi criado em sete dias por Deus, mas agora... tudo ficou confuso. Refletir sobre a vida e a origem do mundo mostrou ser algo complicado a Sofia.
Em A Cartola: a única coisa que precisamos para nos tornarmos bons filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas..., onde Alberto (por meio de cartas) demonstra a Sofia que, de todos os hobbies, as questões que dizem respeito a quem somos e de onde viemos deveriam interessar a todos. Outros dois ponto de destaque no capítulo é a comparação do mundo com um coelho na cartola e a comparação do Filósofo com um bebê. No primeiro caso, o mundo seria um coelho, e nós os moradores que vivem na pelagem desse coelho. O Filósofo seria sempre o ser que estaria nas partes mais externas da pelagem, enquanto as pessoas comuns se reconfortariam no interior dessa pelagem. Já a comparação do Filósofo a um bebê diz respeito à eterna capacidade de se admirar com o mundo. Para um bebê, tudo é novo e estranho, ao contrário do adulto, para quem o mundo é o que é: um dado sem mistério algum.
No capítulo Os mitos: um equilíbrio precário entre as forças do bem e do mal..., temos um vislumbre da importância dos mitos na história da Filosofia. De maneira geral, os mitos foram uma forma do homem conseguir explicar o mundo a sua volta. A natureza parecia ser incontrolável, e vários acontecimentos colocavam em cheque a vida humana. Enchentes, epidemias, doenças, secas e outros eventos naturais eram explicados a partir daquilo que se imaginava ocorrer no mundo dos deuses. A partir de 700 a.C., tivemos com Homero e Hesíodo um registro de grande parte da mitologia grega, o que nos permitiu conhecê-los e criticá-los.
“Dizemos que naquela época ocorreu a evolução de uma forma de pensar atrelada ao mito para um pensamento construído sobre a experiência e a razão. O objetivo dos primeiros filósofos gregos era o de encontrar explicações naturais para os processos da natureza” (GAARDER, 1995, p. 40).
Filósofos da natureza: nada pode surgir do nada... nos traz os primeiros homens considerados filósofos. De origem grega, eles são chamados de Filósofos da Natureza por que se debruçaram a entender os processos naturais. Como era entendimento geral de que nada veio do nada, alguma coisa deveria ser a matéria ou a essência básica de todas as coisas. Assim, para Tales de Mileto (624 - 546 a.C.), a água era o princípio fundamental. Para Anaximandro, tudo veio do infinito, e tudo se dissolve nele. Para Anaxímenes (585 - 525 a.C.), o ar seria a substância básica de todas as coisas. Parmênides (530-515 a.C.) não confiava em seus sentidos. Heráclito (aprox. 535 - 475 a.C.) acreditava nas constantes transformações da natureza, um espaço impregnado de eternos opostos (bem e mal, saúde e doença). Empédocles (495/490 - 435/430 a.C.), por sua vez, acreditava que no mundo havia quatro elementos primordiais: terra, água, fogo e ar. O amor e a disputa seriam responsáveis, respectivamente, pela união e separação de todas as coisas.
Em Demócrito: o brinquedo mais genial do mundo..., temos a introdução de um pensamento extremamente materialista. Demócrito (460 -370 a.C.) acreditava que tudo que existe no mundo era composto por partículas indivisíveis e maciças. Tais partículas existiriam no mundo em diversas formas, e participariam dos processos de transformação de todas as coisas existentes. Sensação e percepção também fariam parte dos processos existentes a partir dos átomos. Vale ressaltar o descrédito que Demócrito dava a qualquer teoria da existência de uma alma imortal. Ele não acreditava que forças ou inteligências sobrenaturais poderiam intervir em processos naturais. Tudo o que existia era átomos e vácuo.
O capítulo Destino: o adivinho tenta adivinhar algo que na verdade não dá para adivinhar... retoma a questão mitológica dos antigos gregos, mas sob um viés fatalista. Para os gregos, tudo era predeterminado pelos deuses, restando aos seres humanos se adequarem a essa norma, ou tentar agradar os deuses por meio de sacrifícios. Apesar de ser um capítulo com a intenção de fazer considerações muito mais históricas do que filosóficas, ele foi importante para o próximo capítulo, denominado Sócrates: mais inteligente é aquele que sabe que não sabe... Nesse capítulo somos apresentados a Sócrates (469 - 399 a.C.), um pensador muito importante para a construção de nosso pensamento atual e que se diferenciou bastante do tipo de filosofia em voga na sua época: a filosofia dos sofistas. Os sofistas discutiam muito sobre a sociedade (o que era natural ou era social), e priorizavam bastante o discurso. Sócrates diferenciava-se dos sofistas na medida em que acreditava não saber de nada. Ele levava as pessoas a refletirem e encontrar respostas por si mesmas, até que elas mesmas chegassem à conclusão de que não sabiam de nada. Em 399 a.C. foi acusado de corromper a juventude e de não reconhecer a existência dos deuses. Foi julgado, considerado culpado e condenado à morte.
No capítulo Atenas: das ruínas cresceram construções monumentais..., Alberto teve a ideia de apresentar um vídeo onde a antiga cidade de Atenas e seus mais famosos moradores (Sócrates e Platão). O Platão (427 - 347 a.C.) do vídeo resolve dar enigmas cujas respostas (ou dúvidas) encontradas são essenciais para o próximo capítulo. Assim, Platão questiona Sofia (por meio do vídeo) as seguintes questões:
Primeiro, gostaria que você refletisse sobre como um padeiro consegue assar cinquenta bolos exatamente iguais. Depois, você pode se perguntar por que todos os cavalos são iguais. Em seguida, pense se acredita que o homem possui uma alma imortal. Por último, tente responder à pergunta se homens e mulheres são igualmente racionais (GAARDER, 1995, p. 40).
Platão volta a ser citado em Platão: o anseio de voltar à verdadeira morada da alma... Aqui, somos apresentados ao seu projeto filosófico, que se caracterizava pelo dualismo corpo e alma. Assim, para além do mundo dos sentidos, Platão acreditava ter um mundo das ideias onde a razão imperava, e todas as imagens existentes em nosso mundo já existiriam, anteriormente, nesse mundo da razão. Por nossa alma ser imortal, ela existiria antes do nosso corpo, sendo sua morada anterior o mundo das ideias. Ao habitar nosso corpo, a alma se esqueceria de todas as ideias perfeitas e passaria a nutrir o desejo de libertar-se desse mundo. Além dessas ideias, Platão também acreditava num modelo de governo perfeito. Ao conceber o corpo humano dividido em três partes primordiais (cabeça – razão, peito – coragem, ventre – desejo), Platão imaginou um Estado ideal governado por filósofos (a cabeça racional), defendido pelos sentinelas (o peito corajoso) e sustentado por trabalhadores (ventre com desejos) tanto por meio da força bruta como também por meio das artes.
No capítulo A Cabana do Major: a garota no espelho piscava os dois olhos ao mesmo tempo, Sofia recebe um envelope com perguntas (“O que veio antes, a galinha ou a ‘ideia’ galinha?”/ “O homem possui ideias inatas?”/ “Qual a diferença entre uma planta, um animal e um homem?”/ “Por que chove?”/ “Do que o homem precisa para viver uma boa vida?”). Tais perguntas servem de plano de fundo para adentrarmos nas ideias de Aristóteles, apresentadas no capítulo Aristóteles: um organizador, um homem extremamente meticuloso que queria pôr ordem nos conceitos dos homens. Considerado como o último grande filósofo grego e o primeiro biólogo (devido ao seu método baseado na apreensão do real por meio dos sentidos), Aristóteles (384 - 322 a.C.) discordava de Platão sobre a existência de um mundo das ideias a parte do nosso. Para ele, o homem possuía uma razão inata, mas as ideias que possuía eram apreendidas no contato com o mundo através dos sentidos. Outro ponto de destaque é a sua ideia de que tudo no mundo pode evoluir, se concretizar, desde que aquilo seja inerente à sua natureza. Assim, um ovo de galinha nunca se “transformará” num ganso. Buscava, dessa forma, não apenas a razão das coisas, mas a sua intenção e sua finalidade. Aristóteles dividiu tudo que existe no mundo em coisas inanimadas, por dependerem de agentes externos para se concretizarem, e em criaturas vivas (animadas), pois possuíam em si todas as sãs potencialidades de transformação. No que diz respeito ao lugar e à natureza do homem, Aristóteles acreditava que éramos melhores do que as plantas e os animais (estávamos acima), pois possuímos capacidade de locomoção, sentimentos e razão. Seriamos também seres políticos, pois sem a sociedade, não seríamos pessoas no real sentido da palavra. Um ponto muito criticado atualmente é a visão que Aristóteles tinha a mulher: considerada um homem incompleto, a mulher serviria apenas como “o solo fértil” para que o homem depositasse sua semente (sêmen).
No capítulo Helenismo: uma centelha de fogo..., somos apresentados a quatro correntes filosóficas: Cínicos, Estóicos, Epicureus e Neoplatônicos. O período em que surgiram essas correntes é chamado de Helenismo devido à grande influência grega nas regiões colonizadas pelo Império Romano. Devido ao fato da própria Roma ter sido demasiadamente influenciada pela cultura (e filosofia) grega, quando a Grécia perdeu seu poder, ainda teve um papel importante na formação do pensamento de outros povos. A filosofia cínica foi fundada por Antístene (445 - 365 a.C.) e teve como principal representante Diógenes (412 - 323 a.C). Como ideia principal, os cínicos defendiam que a felicidade consistia em se libertar de tudo o que o homem mais busca (poder, luxúria, boa saúde), não precisando se preocupar com sofrimento algum. Os filosofia estóica foi fundada por Zenão de Eleia (490 - 430 a.C.), era amante da vida política em sociedade e defendia a ideia de que todas as pessoas são frutos da mesma razão e, portanto, com a garantia dos mesmos direitos universalmente válidos. A filosofia epicurista foi fundada por Aristipo de Cirene (435 - 356 a.C.) e desenvolvida por Epicuro (341 - 270 a.C.). Desinteressados pela vida política e levando consigo o lema “Viva o momento”, os epicuristas defendiam uma vida com o máximo de satisfação e o mínimo de sofrimento. Epicuro, por exemplo, acreditava que apenas os prazeres obtidos a longo prazo propiciavam a verdadeira satisfação ao homem.  Por fim, o helenismo trouxe em si o Neoplatonismo de Plotino (205 - 270), a corrente que mais influenciou a teologia cristã.  Defendendo a divisão do mundo entre luz e trevas, os neoplatonistas acreditavam que a luz iluminava a alma humana, enquanto seu corpo era provindo das trevas.
No capítulo Os cartões postais: estou me impondo uma rigorosa censura..., não temos aprendizados importantes referentes à história da Filosofia, priorizando assim o mistério que tem cercado a vida de Sofia. No capítulo Dois círculos culturais: só assim você não vai ficar flutuando no espaço vazio..., temos a apresentação da cultura semita e sua importância no desenvolvimento do pensamento ocidental. Diferindo dos indo-europeus, de religião politeísta, os semitas eram monoteístas e acreditavam numa passagem linear da história. Foi uma cultura que difundiu as três grandes religiões da atualidade: judaísmo, cristianismo e islamismo. O apóstolo Paulo foi o grande difusor do pensamento cristão, um pensamento que diferia de tudo o que os povos influenciados pelo pensamento grego conheciam e entendiam.
O capítulo A Idade Média: percorrer um pedaço do caminho não é o mesmo que percorrer o caminho errado... nos mostra a primeira aparição de Alberto à Sofia. Nesse capítulo são mostradas as contribuições dos filósofos Santo Agostinho (354 – 430) e Santo Tomás de Aquino (1225 – 1274)na consolidação do pensamento cristão. Santo Agostinho se utilizou muito das ideias de Platão para postular que o mal era a ausência de Deus. Santo Tomás de Aquino, por sua vez, se utilizou de Aritóteles para defender que o caminho para se chegar a Deus haviam dois caminhos: o primeiro, onde deveríamos nos guiar pela fé e pelas revelações divinas, e o segundo pela razão e pelos sentidos. Para Santo Tomás de Aquino, razão e fé não eram, portanto, irreconciliáveis.
Em O Renascimento: ó linhagem divina vestida com trajes mortais... nos é mostrado o período em que a arte e a cultura da Antiguidade foram buscados. Muitas mudanças ocorreram, como por exemplo o deslocamento de Deus como o centro do Universo (teocentrismo) e a centralização do homem nesse local anteriormente ocupado (antropocentrismo). Outro pensamento novo que surgiu nesse período foi o método empírico, próprio das Ciências. Com isso, temos grandes nomes, como Galileu Galilei (1564 – 1642) e Nicolau Copérnico (1473 – 1543).
No capítulo Barroco: da mesma matéria que compõe os sonhos..., somos apresentados aos pensamentos do século XVII. Alberto destaca o período Barroco como um período de destaques dos opostos e contrates, tanto no âmbito artístico, quanto no político e social. Assim, tivemos a ostentação de formas opulentas na arquitetura e nas artes plásticas. Nomes como William Shakespeare, Calderón de la Barca e Ludvig Holdberg se destacaram nesse período.
Em Descartes: ele queria limpar o terreno dos velhos materiais..., o pensamento de René Descartes (1596 – 1650) é investigado. Descartes tomou como objetivo de sua filosofia desconstruir os conhecimentos outrora produzidos para então partir de um lugar filosoficamente seguro. Acreditando na razão como forma de se chegar à verdade (ignorando os sentidos), Descartes buscou entender também a relação do corpo com a alma, postulando o homem como um ser dual por ser, ao mesmo tempo, um ser pensante e um ser que ocupa um espaço. Aliás, Descartes chegou à conclusão que, de todos os conhecimentos possíveis, o seu pensamento era a única coisa da qual ele podia ter certeza. Acreditava também na existência de Deus, afirmando que é imprescindível a um ser perfeito ter o atributo da existência como uma de suas características.
O pensamento de Baruch Spinoza (1632 – 1677) é mostrado no capítulo Spinoza: Deus não é um manipulador de fantoches... Influenciado por Descartes e crítico da religião cristã e da Bíblia, Spinoza acreditava num Deus presente em todas as coisas da natureza. Num tempo em que a Igreja acreditava que havia um “abismo intransponível” entre Deus e o homem, Spinoza mostrou uma evolução grande de pensamento ao mostrar que Deus estava em todos os lugares. Também era racionalista e pretendeu mostrar que a vida do homem é governada pelas leis da natureza. Achava que o homem tinha que se libertar de seus sentimentos e sensações para só então encontrar a paz e ser feliz. Ele era monista (acreditava somente numa natureza material, física). Spinoza considerava Deus, ou as leis da natureza, a causa interna de tudo o que acontecia. Ele tinha uma visão determinista. Ele defendeu de forma enérgica a liberdade de expressão e a tolerância religiosa.
John Locke (1632 - 1704), por sua vez, nos é apresentado no capítulo Locke: tão vazia quanto uma lousa antes do professor entrar em classe... Para entender a particularidade de Locke, é preciso entender que na sua época imperava na Europa um pensamento racionalista encabeçado por Descartes, Spinoza e Leibniz. Iniciando a tradição do empirismo, Locke acreditava que todo o conhecimento provinha dos sentidos, ou seja, que todos os nossos pensamentos e nossas noções nada mais eram do que um reflexo daquilo que um dia já sentimos ou percebemos através de nossos sentidos. Dessa forma, Locke se assemelhou muito à Aristóteles. Nosso pensamento não seria nada mais do que uma “tábula rasa” onde os conhecimentos sensoriais são dispostos. Locke também estabeleceu a diferença entre aquilo que se chama de qualidades sensoriais primárias e secundárias. Enquanto as qualidades sensoriais primárias se referiam à extensão, ao peso, à forma, ao movimento e aos número das coisas, as qualidades sensoriais secundárias reproduziriam apenas o efeito das coisas sobre os nossos sentidos (cheiro, gosto, etc.).
Seguindo a tradição empírica, temos o filósofo David Hume (1711 - 1776) no capítulo Hume: atira-o ao fogo então... Hume iniciou algo que pode ser considerado como o uso do método científico à análise de ideias. Isso por que ele acreditava que uma ideia, por mais complexa que fosse, poderia ser decomposta em partes menores. Hume queria retornar à forma original pela qual o homem experimentava o mundo. Constatou que o homem possuía impressões de um lado, e idéias, de outro e atentou para o fato de que tanto uma quanto outra poderiam ser ou simples ou complexas. Ele se preocupou com o fato de às vezes formarmos idéias e noções complexas, para as quais não há correspondentes complexos na realidade material. Era dessa forma que surgiam as concepções falsas sobre as coisas.
Como exemplo de um empirismo atrelado às ideias cristãs, temos o bispo irlandês George Berkeley (1685-1753). No capítulo Berkeley: como um planeta atordoado ao redor de um sol fumegante..., Berkeley é apresentado como um filósofo para quem tudo que existia era só o que percebíamos e que aquilo que percebíamos não era matéria ou substância. Acreditava também que todas as idéias tinham uma causa fora da consciência, mas que esta causa não era de natureza material e sim de natureza espiritual. Segundo Berkeley, portanto, a alma podia ser a causa das próprias idéias, mas só outra vontade, só outro espírito podia ser a causa das idéias que formavam o mundo material. Esse espírito onipotente seria Deus.
O capítulo Bjerkely: um antigo espelho mágico, que sua bisavó comprara de uma cigana... mostra pela primeira vez Hilde Knag, a moça misteriosa das cartas que Sofia recebia. Em O Iluminismo: da produção de agulhas à fundição de canhões..., é mostrado o pensamento denominado Iluminista como típico do século XVIII. Poder da razão e do progresso, liberdade de pensamento e emancipação política eram temáticas próprias desse período. Os filósofos desta época diziam que só quando a razão e o conhecimento se difundissem era que a humanidade faria grandes progressos. A natureza para eles era quase a mesma coisa que a razão e por isso enfatizavam um retorno de homem a ela. Falavam também que a religião deveria estar em consonância com a razão natural do homem, o que fez com que se desenvolvessem teorias teológicas interessantes, como o Deísmo.
Kant: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim... é o capítulo que nos traz a história e os pensamentos de Immanuel Kant (1724 - 1804). Para ele, racionalistas e empiristas estavam, em determinados pontos, corretos. Concordava por exemplo, com Hume, quando este diz que os conhecimentos devem-se ás impressões que temos do mundo. No entanto, era a favor dos racionalistas na medida em que acreditava que a razão tinha alguns pressupostos que guiavam a forma como percebemos o mundo. Acreditava, por exemplo, que devido ao fato da razão humano entender tudo dentro do viés causa-e-efeito, esse seria um princípio imutável. Ele atentou para o fato de haver limites bem claros para o que o homem podia saber e achava que o ser humano jamais poderia chegar a um conhecimento seguro a respeito da existência de Deus, de que o universo era ou não infinito, etc. Dessa forma, a razão impunha ao homem, de acordo com Kant, limites bem claros do que ele (o homem) poderia ou não conhecer.
O capítulo posterior intitula-se Romantismo: o caminho do mistério aponta para dentro... Nesse capítulo, somos apresentados a um pensamento que foi majoritário na Europa do século XVIII, pensamento esse denominado Romantismo. A premissa desse pensamento era simples: os sentimentos são capazes de expressar mais coisas do que a nossa razão. Por isso que nessa época houve uma supervalorização dos artistas. Costumava-se dizer que o artista possuía uma espécie de imaginação criadora do mundo e em seu êxtase artístico seria capaz de experimentar um estado em que as fronteiras entre sonho e realidade desapareceriam. Considerado como uma reação ao pensamento friamente racional e mecanicista do Iluminismo, o Romantismo priorizava os sentimentos, os desejos, a natureza e o misticismo. A glorificação do “eu” nessa época foi intensa.
Em Hegel: só o que é racional é viável..., conhecemos o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 - 1831), um pensador que desenvolveu e modificou várias ideias surgidas no período romântico. Dono de um pensamento visivelmente historicista, Hegel defendia uma verdade subjetiva, diferente da ideia dos filósofos anteriores que acreditavam na verdade como algo além da razão humana. Ou seja, para Hegel, as bases do conhecimento mudavam de geração para geração e, por conseqüência, não existiam verdades eternas. Sem considerar o processo histórico, não é possível discutir sobre verdade. Aliás, discutir sobre a verdade é discutir pensamentos que mudariam constantemente em função da história. Defendia também a ideia de um “espírito do mundo”. Ele falava que não era o indivíduo que encontrava a si mesmo, mas o espírito do mundo e tentou mostrar que este retorna a si em três estágios: em primeiro lugar, o espírito do mundo se conscientiza de si mesmo no indivíduo (chama-se de razão subjetiva); depois, atinge um nível mais elevado de consciência na família, na sociedade e no Estado, (chama-se de razão objetiva); e enfim atinge a forma mais elevada de autoconhecimento na razão absoluta. E esta razão absoluta eram a arte, a religião e a filosofia, sendo esta última a mais elevada da razão. Só na filosofia era que o espírito do mundo se encontraria. Desse ponto de vista, a filosofia podia ser considerada o espelho do espírito do mundo.
O filósofo Søren Aabye Kierkegaard (1813 - 1855) nos é apresentado no capítulo Kierkegaard: a caminho da bancarrota... Em oposição aos pensamentos de Hegel, Kierkegaard defendia que mais importante do que a busca de uma verdade era a busca por verdades que são importantes para a vida de cada indivíduo. Kierkegaard também defendia três possibilidades diferentes de existência humana, e as denominou de (1) estágio estético, (2) estágio ético e (3) estágio religioso. Aqueles que viveriam no estágio estético desfrutariam o momento e visaria sempre o prazer. Os que estariam no estágio ético seriam marcados pela seriedade e por decisões consistentes, tomadas segundo padrões morais. E, finalmente, quem viveria no estágio religioso preferiria a fé ao prazer estético e aos mandamentos da razão. Para Kierkegaard, o estágio religioso era o cristianismo.
Todo o pensamento de Karl Marx (1818 -1883) é exposto no capítulo Marx: um fantasma ronda a Europa... Historiador, filósofo, sociólogo e economista, todo o pensamento de Marx é marcado pelo materialismo. Acreditava que a filosofia, até então, só havia tentado interpretar o mundo, mas não o modificou. E isso era algo que Marx não tolerava. Para ele, as condições materiais de uma sociedade determinavam, em última instância, também as condições espirituais (ideologia, política, etc.). Haveriam, portanto, três camadas de sustentação da sociedade. A primeira camada estaria embaixo de tudo, e seriam as condições naturais de produção que compreendiam os recursos naturais. A segunda camada seria formada pelas forças de produção de uma sociedade, que não era só a força de trabalho do próprio homem, mas também os tipos de equipamentos, ferramentas e máquinas, os chamados meios de produção. Por fim, a terceira camada trataria das relações de posse e da divisão do trabalho, chamada de relações de produção de uma sociedade. Para ele, o modo de produção determinava se relações políticas e ideológicas podiam existir. Um pensamento fundamental de sua teoria é a ideia de que toda a história se caracterizou como uma luta de classes. Como era de se imaginar, a questão do trabalho foi muito discutida nos escritos de Marx. Para ele, o trabalho executado pelo homem deixava suas marcas não apenas na natureza, mas nele mesmo. Crítico ferrenho do capitalismo, via nele apenas uma vantagem: ele seria o estágio fundamental para a vinda do comunismo: sociedade onde o proletariado tomaria o poder da burguesia e criaria um novo sistema social.
Um pensador que não foi filósofo, mas modificou bastante as ideias ocidentais foi Charles Darwin (1809 - 1882). No capítulo Darwin: um barco carregado de genes navegando pela vida..., descobrimos que Darwin, a partir de sua ciência, questionou e colocou em dúvida a visão bíblica sobre o lugar do homem na criação. Ele achava que precisava se libertar da doutrina cristã sobre o surgimento do homem e dos animais, vigente em sua época. Defendeu durante sua vida, duas teorias principais (e gerais). Sua primeira teoria era a de que todas as espécies vivas de nosso planeta (plantas e animais) descendiam de uma mesma forma primitiva de vida. A outra principal teoria de Darwin era que a evolução no planeta Terra ocorreu por meio da Seleção Natural. Nessa teoria, quem melhor se adaptava ao meio ambiente, sobrevivia e podia garantir a continuidade de sua espécie. "As constantes variações entre indivíduos de uma mesma espécie e as elevadas taxas de nascimento constituem a matéria-prima para a evolução da vida na Terra. A seleção natural na luta pela sobrevivência é o mecanismo, a força propulsora que está por trás desta evolução. A seleção natural é responsável pela sobrevivência dos mais fortes, ou dos que melhor se adaptam ao seu meio".
Outro que não era filósofo, mas mudou completamente nossa visão do ser humano foi Sigmund Freud (1856- 1939). O capítulo Freud: um desejo terrível, egoísta, veio à tona dentro dela... nos mostrou como o ser humano era, antes de ser racional, um ser que era guiado sobretudo por sua irracionalidade, ou seja, por seu inconsciente. Freud descobriu o universo dos impulsos que regiam a vida do ser humano. Dentre as várias novidades de seu pensamento (nem sempre muito bem aceitos), tivemos as ideias sobre a sexualidade infantil, um escândalo para uma época em que as crianças eram consideradas “pequenos anjos”. Após um longo período de experiência com pacientes, Freud concluiu que a consciência seria nada mais do que a “ponta de um iceberg” que se elevava para além da superfície da água. Sob a superfície, ou sob o limiar da consciência, estaria o inconsciente, que para Freud, simbolizaria tudo o que reprimimos desde a infância.
Em Nosso próprio tempo: o homem está condenado à liberdade..., somos apresentados às ideias existencialistas. São citados nesse capítulo os filósofos Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) e Martin Heidegger (1889 - 1976). Mas o foco dado foi ao filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905 - 1980). Representante do existencialismo ateu, Sartre defendia a ideia de que a existência era uma noção fundamental na vida humana. Enquanto coisas e animais simplesmente existem “em si”, os seres humanos teriam consciência dessa existência e se indagavam sobre, sendo, portanto, uma existência “para si”. Para Sartre, o ser humano estaria condenado à liberdade, tendo por obrigação tomar responsabilidades sobre sua existência. Nota-se o quanto esse pensamento tira do homem a noção de ser ele uma espécie que está sob o jugo da história, das contingências de sua vida e de sua própria irracionalidade inconsciente. Por fim, os três últimos capítulos (Festa no jardim: uma grande barca..., Contraponto: duas melodias soando ao mesmo tempo... e A grande explosão: nós também somos poeira estrelar...) trazem o desfecho da história da Sofia, bem como as últimas lições de filosofia como, por exemplo, a questão do Big Bang.
A impressão que temos ao final da leitura é a de que Jostein Gaarder acertou em cheio na receita desse livro. A mistura de uma realidade fantástica com os ensinamentos claros e precisos de filosofia nos dá a impressão de saímos da leitura com várias ideias sobre as pessoas e o mundo. Fora a pergunta fundamental que a história de Sofia nos traz sobre a realidade dela e a de Hilde como, inicialmente, realidades sobrepostas para depois se tornarem realidades paralelas em um mesmo espaço. A sacada do autor desse livro foi, sem dúvida, genial. Uma ótima dica de leitura tanto para os amantes da literatura fantástica quanto para os apreciadores da filosofia.[1]



[1] Referência

GAADER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Um passeio ao ar livre

Hoje decidi falar de mim. Mas trocarei, em determinadas ocasiões, o pronome “eu” por “nós”, pois descobri que possuo um defeito compartilhado por muitos (para não dizer todos). Decidi aproveitar um pouco o final de semana para fazer um passeio no parque de minha cidade (Ponta Porã – MS), bem no estilo inglês: caminhada-passeio, com uma amiga ao lado (só que sem os braços dados, quebrando o clichê dos filmes britânicos), apreciando a paisagem e falando banalidades.


No entanto, logo notei que aquele passeio estava demasiadamente agradável. Sim, muito agradável! E digo qual é a situação mais agradável para mim: espaços com poucas pessoas. Sou um agorafóbico por natureza. Espaços repletos de pessoas me deixam desnorteados, sem saber o que pensar ou fazer. Preciso da solidão mínima para que, minimamente, eu me reconheça como um ser humano que aprecia a vida. E eu estava apreciando muito o local, o que me incomodou bastante.
O que faria, em uma tarde de sol, em um final de semana e em um ambiente belíssimo, com que pessoas simplesmente não saíssem de suas casas para apreciar a paisagem? De repente, percebi o quanto estamos insensíveis à beleza. Não sair de casa para ver o Sol, ver o céu, apreciar a paisagem, só pode demonstrar como nosso senso estético está deficiente. Ou como banalizamos as belezas naturais a ponto de desprezá-las. Enfim, de um modo ou de outro, o que isso demonstra é que não sabemos mais o que é belo.
É triste saber, portanto, que nossos parques estarão cada vez menos lotados. Espaço onde as poucas crianças que ainda guardam em si o espírito infantil irão reinar em absoluto, adultos e jovens serão cada vez mais raros de serem vistos lá. E quando lá estiverem, será num período de 30 minutos a 1 hora. O tempo necessário para manter a forma em exercícios aeróbicos. 

sábado, 30 de novembro de 2013

“A Psicologia como o estudo de interações” de João Claudio Todorov – uma introdução às definições sobre o que é a Psicologia e a Análise do Comportamento

O texto resenhado de hoje é de autoria de João Cláudio Todorov. Todorov possui licenciatura em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1963) e doutorado em Psicologia pela Arizona State University (1969). É Professor Emérito da Universidade de Brasília, e foi Reitor (1993-1997), Vice-Reitor (1985-1989) e Decano de Pesquisa e Pós-Graduação (1985) da Universidade de Brasília. O presente artigo foi publicado por ele no 23º volume da revista Psicologia: teoria e pesquisa, em 2007, e tem por objetivos analisar os problemas existentes nas várias de definições de Psicologia e expor as vantagens, do ponto de vista da Análise do Comportamento, em definir a Psicologia como o estudo de interações organismo-ambiente.

Todorov (2007) inicia seu texto demonstrando a dificuldade que a definição de Psicologia traz a quem ousa defini-la. Quer a caracterize como a ciência da vida mental, quer a defina como uma ciência do comportamento, em ambas as definições só teremos a necessidade de mais explicações.
Indiferentes às deficiências das definições mencionadas, há os que se preocupam com uma definição que contente a mentalistas e a comportamentalistas. Para estes, a Psicologia seria o estudo do comportamento e da vida mental. Contudo, a reunião em uma mesma frase de dois termos indefinidos não melhora uma definição (TODOROV, 2007, p. 57).
O objetivo de Todorov é, a partir de um viés analítico comportamental, dar uma definição que caracterize também o trabalho da Psicologia como um todo. Para Todorov, a Psicologia é uma ciência que estuda as interações entre organismo e ambiente. Como organismo escolhido como objeto de estudo, a Psicologia escolheu o homem, mesmo que ela se utilize de outros animais para teorizar e estudar o comportamento humano.
Também é papel do psicólogo estudar a interação do homem com o ambiente. Mas não são todas as interações que Todorov (2007) considera como papel da Psicologia investigá-las. Assim, ele exclui as interações que se referem a partes do organismo, sendo estas parte das investigações que a Biologia deve tomar para si. Também exclui as interações que lidam com grupos de indivíduos como unidades, tal qual as Ciências Sociais. No entanto, as fronteiras entre as áreas não são rígidas, podendo ser tranquilamente sobrepostas, a ponto de surgir áreas próprias de estudo, como a Psicofisiologia e a Psicologia Social. “[...] a passagem da Psicologia para a Biologia ou para as ciências sociais é muitas vezes questão de convencionar-se limites ou de não se preocupar muito com eles” (TODOROV, 2007, p. 58).
Há, no entanto, de se tomar como verdade um erro de pensamento comum, que é a questão do determinismo total. Todorov enfatiza que, tomar a Psicologia como um estudo das interações não torna o homem nem como um ser acima da natureza (divinizado, especial), e nem como um robô totalmente determinado pela natureza. “Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são modificados pelas conseqüências de sua ação” (TODOROV, 2007, p. 58). Dito isso, o autor inicia então suas considerações sobre os níveis de interação entre organismo e ambiente, com foco nas dicotomias “interno/externo”.
Para Todorov (2007), homem consegue se relacionar com o ambiente externo de formas diretas e indiretas. Diretamente, nosso organismo se utiliza de atributos físicos para agir no mundo físico. Por exemplo, estende a mão para buscar um copo de água. Por outro lado, o organismo pode se relacionar com o mundo através de formas indiretas, como a fala (comportamento verbal). Nesse mesmo exemplo, o organismo conseguiria o copo de água através de um pedido verbal “me dê um copo de água”.
O trecho citado ilustra a divisão do ambiente externo em físico e social. As interações do organismo com seu ambiente social não são de natureza diferente daquelas interações com seu ambiente físico; são apenas mais difíceis de descrever. Essa dificuldade, entretanto, parece ser responsável pelo desenvolvimento independente de diversas áreas da Psicologia e pelas tentativas de desenvolver-se diferentes conceitos e princípios (TODOROV, 2007, p. 58).
Há também o ambiente interno, que pode ser considerado como o ambiente biológico e/ou histórico. Todorov ressalta, no entanto, que tais ambientes são indissociáveis. Não dá para se pensar em ambiente físico, social, histórico e biológico de maneiras separadas. Quando falamos de ambiente interno biológico, estamos afirmando que modificações internas do organismo participam das interações entre o organismo e o ambiente “[...] tanto como estímulos que controlam respostas que os antecedem ou os seguem, quanto como respostas controladas pelos estímulos componentes da interação, como veremos mais adiante” (TODOROV, 2007, p. 59).
Já no que diz respeito ao ambiente interno histórico, as teorias geralmente recorrem a dois tipos diferentes de explicação. Na primeira explicação imperam as teorias defensoras de algum aparato mental interno, tais quais as diversas teorias psicanalíticas apóiam. De outro lado, há as explicações “[...] que referem-se a contingências passadas, observadas ou hipotéticas, como nas também variadas versões atuais do comportamentalismo” (TODOROV, 2007, p. 59).
A decomposição do conceito de ambiente em externo, físico ou social, e interno, biológico ou histórico, é apenas um recurso de análise útil para entender-se a fragmentação da Psicologia em diversos campos e para apontar os diversos fatores que, indissociáveis, participam das interações estudadas pelos psicólogos. Sem a decomposição necessária para a análise, o todo é ininteligível; por outro lado, a ênfase exclusiva nas partes pode levar a um conhecimento não-relacionado ao todo. O jogo constante de ir e vir, de atentar para a interrelação das partes na composição do todo é essencial para o entendimento das interações organismo-ambiente (TODOROV, 2007, p. 59).
A partir disso, Todorov (2007) enfatiza a interdependência entre os conceitos de comportamento e ambiente. Apesar de salientar que não se sabe exatamente hoje o que é e o que não é comportamento, sabemos hoje que comportamento não existe sem ambiente, e descrever o ambiente sem citar o comportamento é algo inútil para um cientista do comportamento. Temos assim uma noção de causa e efeito no que se refere à relação entre o ambiente e o comportamento.
Devemos ao filósofo David Hume (1711-1776) a noção de causa e efeito, onde causa é a mudança numa variável independente, e efeito é uma mudança numa variável dependente. Na questão do comportamento, entretanto, temos como fator relevante as variáveis de contexto, que influenciam a ocorrência ou não do efeito após a ocorrência da causa. Estamos falando aqui de antecedentes históricos. “Contexto não se refere apenas a características atuais do ambiente externo” (TODOROV, 2007, p. 60). Ao dizer isso, Todorov faz referência ao teórico Staddom, que de acordo com ele, estabeleceu a noção de variáveis do contexto
Dessa forma, Todorov conclui seu artigo demonstrando o conceito de contingência e a importância do psicólogo buscar em sua atividade, as contingências que mantém determinado comportamento. “Na análise do comportamento, o termo contingência é empregado para se referir a regras que especificam relações entre eventos ambientais ou entre comportamento e eventos ambientais” (TODOROV, 2007, p. 60).
O artigo é bem claro quanto ao seu objetivo: definir a Psicologia como o estudo das interações. Só que mais do que isso, Todorov se propõe a fazer uma tarefa que poucos ousam, que é dar uma definição geral à Psicologia a partir de considerações da Análise do Comportamento. Num momento em que a Análise do Comportamento é posta de lado quando as diversas Psicologias definem essa área como a “Ciência da Subjetividade”, Todorov parece ter conseguido colocar todas as abordagens numa única definição sem, contudo, excluir a Análise do Comportamento.

Referência

“Bandido bom é bandido morto!”

Festas familiares são, para mim, um verdadeiro treino de paciência e bons modos. Sou analítico por natureza e crítico por criação, mas em eventos micro-sociais, preciso suspender qualquer tipo de análise crítica para poder conviver sadiamente com os demais. Porém, a quantidade de asneiras e abominações que escuto são absurdamente enormes. Ao dizer isso, parece que me considero melhor que os outros, e de fato, eu mesmo já pensei nisso. Não cheguei a conclusões definitivas, mas sei que minha principal diferença nesse mundo é que penso demasiadamente no que digo, característica essa que não ocorre com frequência na nossa sociedade pós-moderna.
Pois bem, participei de uma dessas festas familiares. Cerveja, churrasco e mandioca. Um clima bastante agradável, festivo, alegre. Assuntos envolvendo crises familiares, piadas homofóbicas (“mas é um bichinha mesmo”) e críticas ao jeito que determinada mulher se vestia (“mas parecia uma vadia! Por isso não segura homem”). Enfim, nada mais do que o esperado em uma festa familiar. E assumindo um lado mais “fala que eu te escuto”, consegui escutar tudo e participar das conversas com um sorriso no rosto.
Mas meu sorriso no rosto logo se esvai quando escuto uma frase aleatória: “bom os tempos em que os policiais matavam bandido e não tinha uma alma viva pra questionar!”. Me vi, de repente, numa mesa rodeada de assassinos sanguinários que, movidos por medo, decidem fazer justiça com as próprias mãos. “A polícia não pode fazer nada mais, que a cambadinha dos Direitos Humanos caem em cima!”. O desejo inicial é que a polícia, com todo o poder a eles investidos, possa agir como justiceiros, punindo os cruéis vilões de nossa sociedade. Paulo Ghiraldelli já deixou isso explícito em um artigo seu , ao demonstrar os perigos de se dar tanto poder à polícia. Mas esse é apenas um perigo inicial. O perigo posterior é bem mais terrível.
Vivemos tempos sombrios, onde a opinião da maioria luta para ser capaz de definir o que (ou quem) pode ou não viver. Já fizemos isso no passado. É graças ao acordo feito entre os homens que hoje podemos ultrapassar o que a natureza nos dita em relação ao assassinato (matar para comer). Podemos atualmente matar para vender. Lógico que é um assassinato cheio de regras (apenas vacas, porcos, galinhas, ovelhas e cabritos), mas que se permite uma vez ou outra passar um pouco dessas regras (temporada de caça e pesca). Há outros casos especiais que burlam essa regra em alguns países, por exemplo, onde a pena de morte (judicialmente afirmada) é permitida. Enfim, expus esse caso para demonstrar o quanto a morte já foi e pode ser ainda mais permitida e aceita sem “peso na consciência”.
Ora, defender que a polícia deve agir sem que ninguém se intrometa, e mais, desejar ser um policial inquestionável defensor dos “fracos e oprimidos”, é exatamente o princípio de uma ditadura onde a maioria exerce de maneira selvagem o poder sobre quem não se agrega ou destoa das concepções defendidas pelas massas. Pode parecer exagero pensar assim, e eu gostaria de realmente estar exagerando. Mas a realidade não me permite sonhar tanto assim. Não quero alongar esse texto, mas para notar como a sociedade democrática tem dado espaço para algo que eu chamaria de “selvageria massificada”, quero citar a dificuldade que os discursos diferentes do estipulado pelo atual status quo têm em se colocar no meio acadêmico, onde a premissa básica é criticar a tudo e a todos, menos às concepções marxistas. Mesmo que você nunca tenha lido Karl Marx, é seu dever se posicionar como marxista. Quis dar um exemplo acadêmico para que possamos ver que mesmo a nossa “elite intelectual” tem dado vazão a um posicionamento selvagem a tudo que se contrapõe a ela. É um assunto que rende outro texto, no entanto.
O que precisamos ver agora aqui é como temos caminhado a passos rápidos para uma sociedade onde a vida do indivíduo é sempre posta em cheque pelo seu meio social. Num bairro onde há a suspeita de bandidagem, o suspeito em questão terá sorte se sobreviver há um julgamento socialmente selvagem. Não é o que temos hoje (de forma explicitamente estabelecida), mas é o que deseja nossa sociedade que luta por “acabar com o mal pela raiz”.
Como estudante de Psicologia, é engraçado notar que, de fato, sociedade e indivíduo são instâncias indivisíveis. Leio sobre questões sociais e chego a duvidar delas, até entrar em contato com o cotidiano: palco onde todas as ideologias sociais encenam um teatro não fictício através do indivíduo comum. Hoje, uma peça cujo título é “Bandido bom é bandido morto”, amanhã, uma peça intitulada “Concorde com todos se quiser viver”. Mas o pior de tudo é saber que hoje, como defensor dos Direitos Humanos, sou considerado uma ameaça à família justamente por que na opinião da maioria, eu só quero “defender bandido”. Tudo bem. Não tenho problemas com isso hoje. Mas em relação ao amanhã, só espero morrer de causas naturais (ou seja, sem tortura) antes dos 35, por que depois disso... 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Vejam as luzes de Natal.

Oh!

Vejam

As luzes!

No bairro inteiro

Já podemos vê-las!

Lindas, piscantes, brilhosas

Iluminando noites antes tenebrosas

Noites que antes assustavam inocentes.

Muitas luzes, a todos os cantos de nossa visão

Invadindo os nossos sentidos e as percepções visuais.

Insinuado a chegada de um tempo novo, cheio de esperança.

Mas vejam que estranho. Não eram as mesmas luzes do ano passado?

As mesmas luzes que, através da esperança, prometiam tempos novos e felizes?

Sim! São as mesmas luzes do ano passado, que com seu brilho, nos trazia esperança.

A mesma esperança que tivemos ao vê-las no ano passado durante a ceia de natal em família.

Estranho isso.

Mesmas sensações,

Mesmos sentimentos.

Talvez tenha chegado a hora de entendermos

Que as luzes de natal não são capazes

De tão grandes modificações.

E que essa esperança só pode

Ser depositada no ser humano.


“O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” – para nos lembrar de nossa sensibilidade infantil

"Estranho o destino dessa jovem mulher, privada dela mesma, porém, tão sensível ao charme das coisas simples da vida..." Amélie Poulain


Assistir O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain) deveria constar na lista de filmes que todo mortal deveria ver antes de morrer. Não é pelo caráter autoritário não. É pelo sopro de vida que o filme traz mesmo. Amélie Poulain é um filme tão contagiante, que é quase impossível tirar os olhos da tela. Lhe falta ação, mas lhe sobra emoção. Drama, melancolia, amor, ironia, humor. Tudo misturado com um espírito infantil delicioso.
Produzido na França em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um filme dirigido por Jean-Pierre Jeunet e com roteiro de Guillaume Laurant.  No quesito premiação, em 2002, ganhou Melhor Roteiro Original e Melhor Desenho de Produção no BAFTA, Prêmio da Audiência no Festival Internacional de Edimburgo, Prêmio do Público no festival de cinema de Toronto e Prêmio Adoro Cinema de Melhor Atriz Revelação (Audrey Tautou no papel-título), além das várias indicações: cinco ao Oscar, uma ao Globo de Ouro, sete ao BAFTA, treze ao César e uma ao Grande Prêmio Cinema Brasil.


A história retrata a vida da jovem Amélie (Audrey Tautou) a partir da sua concepção (literalmente, a partir de sua fecundação), seguindo sua infância e chegando à vida adulta de nosso personagem principal e os acontecimentos que a norteiam atualmente. Criada pelos pais, Amélie Poulain quase nunca recebia demonstrações de afeto de seu pai. Os raros momentos de aproximação ocorriam quando seu pai a examinava (ele era médico). Mas a emoção era tanta devido a aproximação do pai, que o coração da pequena Amélie batia muito rápido. O pai, julgando ser aquela uma doença do coração, decidiu educá-la junto com a mãe em casa mesmo, tirando Amélie do convívio social. Como único amigo, Amélie tinha apenas um peixe dourado, que por incômodo da mãe, foi jogado num rio. Ainda na infância de Amélie, presenciamos a morte de sua mãe, que ocorreu de fuma forma trágica e igualmente cômica: uma mulher suicida se jogou do alto de uma igreja e caiu justamente em cima da mãe de Amélie. 


Os anos passam, e Amélie (já adulta) trabalha como garçonete no café Les 2 Moulins, em companhia de personagens bastante cômicos, mas incrivelmente familiares. Temos desde uma balconista que reclama a todo momento estar passando por problemas de saúde (inexistentes na verdade) até um homem ridiculamente obsessivo pela ex namorada.
Mas sua história muda de rumo mesmo quando Amélie vê a notícia da morte de Lady Diana. Surpresa com a notícia, Amélie deixa cair seu vidro de perfume, que ao bater em um dos ladrilhos do banheiro, revela o esconderijo de um tesouro há muito tempo perdido. O tesouro nada mais era do que as lembranças de infância de alguém desconhecido por Amélie, que motivada a entregar o tesouro ao seu verdadeiro dono, Dominique Brotodeau (Maurice Bénichou), se mete em uma das maiores aventuras de sua vida.
Ao ver a alegria de Dominique quando este reencontra seu tesouro, Amélie decide, de maneira anônima, ajudar aqueles que necessitariam de alguma ajuda. Fazendo em seu caminho amigos bastante íntimos e verdadeiros, como o Sr. Joseph (Dominique Pinon), conhecido como "Homem de Vidro”, Amélie se apaixona à primeira vista por um rapaz tão estranho quanto ela, o Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz). Por pura timidez e falta de trato nas relações interpessoais, começa a fazer um jogo de pistas para que ele a encontre. Nino trabalha numa sex shop e no trem fantasma de um parque, coleciona fotografias instantâneas que as pessoas jogam fora, é fissurado por um determinado senhor que tem dessas fotos espalhadas por todas as máquinas da cidade e embarca na aventura que é tentar conhecer a moça que encontrou seu álbum perdido.


Numa cultura tão individualista como a nossa, Amélie consegue, de forma sutil, dar um tapa em nossa cara. Quebrando o hábito de se olhar o próprio umbigo, Amélie consegue atingir também aqueles que só fazem boas ações quando há um público vendo tudo. O engraçado é que a infância de Amélie poderia ter lhe ensinado a ser extremamente individualista (filha única, educada em casa), mas a verdade é que isso não ocorreu. Tímida e introspectiva, ela consegue superar seus traumas infantis ajudando aqueles que passam pelo teu caminho, tal qual uma fada madrinha, que por pura bondade, realiza os sonhos daqueles que realmente merecem. Mas ao contrário dos contos de fadas, onde coisas boas só ocorrem por intermédio da magia, Amélie mostra que ainda é possível ser bondoso(a) mesmo num mundo individualista como o nosso.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“Conceito mente e corpo através da História” – da superstição à Psiconeuroimunologia

Mente e corpo sempre estiveram imbuídos de conteúdos “mágicos”. É o reinado absoluto da superstição desde a pré-história. Pelo menos é essa a visão que Maria da Graça de Castro, Tânia M. Ramos Andrade e Marisa C. Muller querem nos passar em seu artigo Conceito de Mente e Corpo através da História. Publicado na revista Psicologia em Estudo no ano de 2006, o presente artigo é uma introdução bastante resumida (tem apenas 5 páginas) de um tema amplo, que é o problema Mente x Corpo.
O texto se inicia com as considerações históricas sobre saúde e doença, ressaltando o viés supersticioso com o qual sempre foram tratados tais assuntos. Tal intenção em retratar os termos saúde e doença é simples: as histórias entre as duas divisões se confundiram e se misturaram no decorrer dos tempos. Dessa forma, temos um apanhado histórico desde os tempos pré-históricos, passando pela antiguidade, Idade Média e Renascimento, até chegar à Psicanálise e, mais recentemente, aos postulados da Psicossomática e Psiconeuroimunologia.
O problema da doença foi uma preocupação humana desde a antiguidade. E tal preocupação não se resumia apenas ao tratamento da doença, mas sim, sua explicação. O caráter supersticioso foi bastante investigado, por exemplo, nas culturas assírio-babilônicas, graças às descobertas arqueológicas que permitiram vislumbrar a visão dessa cultura já antiga. Na Grécia Antiga, a doença era vista como uma fúria dos deuses. Tal visão grega só se modificou com as explicações dadas por Hipócrates, ofereceram uma visão completamente diferente da que se tinha até então nos tempos antigos.
Hipócrates de Cós (460 a.C.), que deu à medicina o espírito científico, em uma tentativa de explicar os estados de enfermidade e saúde, postulou a existência de quatro fluidos (humores) principais no corpo: bile amarela, bile negra, fleuma e sangue; desta forma, a saúde era baseada no equilíbrio destes elementos (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 39).
Outros pensadores da antiguidade, além de Hipócrates, auxiliaram na modificação não apenas da noção de saúde e doença, mas da própria relação que a nossa alma tinha com o nosso corpo. Demócrito foi um desses pensadores que, a partir da sua teoria dos átomos como unidades indivisíveis, auxiliou na difusão da ideia de que a alma era constituída por átomos, e que a partir dos poros de nossos corpos, nos permitiam as sensações (evidentemente, o que se entende aqui é que as sensações eram atividades da alma). Contribuição importante também deu Cláudio Galeno (129-199), cujas ideias defenderam a teoria dos temperamentos e a influência do desequilíbrio deles na saúde do indivíduo. Como pode se notar, foi a Grécia que trouxe inicialmente a noção de que a doença tinha um caráter interno que a gerava e condicionava. Foi só a partir de Paracelsus (1493-1541) que tivemos acesso à ideia de que doença ocorre por causa de agentes externos. O tratamento deveria ser, portanto, através de agentes químicos externos.
Em seguida, Castro, Andrade e Muller (2006) demonstram a visão que se tinha de saúde e doença na Idade Média. De forma resumida, a doença era um castigo de Deus diante do pecado dos homens. Vale ressaltar que, nesse período, Santo Tomás de Aquino teve um importante papel, pois defendia a ideia de a razão ser atributos divinos da alma humana, separada portanto do corpo. É possível dizer aqui que, provavelmente, as ideias cartesianas vindas de Descartes tiveram suas origens aqui, na Idade Média.
Ao avaliar o período da modernidade nota-se um interesse crescente pelas ciências naturais. Descartes, imerso neste contexto, postulou a separação total da mente e corpo, sendo o estudo da mente atribuído à religião e à filosofia, e o estudo do corpo, visto então como uma máquina, era objeto de estudo da medicina (DESCARTES, 1637/2000 apud CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 40).
Com a chegada do século XX e o advento das teorias psicanalíticas, tivemos um retorno das ideias que ressaltavam o papel do ambiente interno. “Observa-se [no entanto] que desde seu início a psicanálise partiu do corpo, com os estudos de Freud sobre a histeria e sua atenção às conversões” (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 40). E foi em 1917 que a relação corpo/mente foi mais investigada e teorizada. Um influente psicanalista chamado Groddeck postulou que, tal qual a histeria, as demais doenças somáticas tinham um fundo psíquico, simbólico.
No entanto, apesar dessas considerações que buscavam integrar o corpo e a mente, separados desde a época de Descartes, o termo e o campo de investigações científicas denominada Psicossomática só foram cunhados por Heinroth em 1908. Assim,
“[...] psicossomático é definido como todo distúrbio somático que comporta em seu determinismo um fator psicológico interveniente, não de modo contingente, como pode ocorrer com qualquer afecção, mas por uma contribuição essencial à gênese da doença” (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 40).
Castro, Andrade e Muller (2006) ainda colocam como importante ponto na história mente/corpo o nascimento do termo Alexitimia, cunhado por Sifneos. O termo passou a designar todos os indivíduos que não conseguiam verbalizar seus conteúdos internos. “A idéia central é que os sujeitos psicossomáticos se diferenciam dos demais pela pobreza do mundo simbólico, havendo pouca elaboração psíquica. Seu pensamento é do tipo operatório, aprisionado ao concreto e à orientação pragmática, tendo pouca ligação com o seu inconsciente”.
A partir de 1956, temos com Hans Selye o desenvolvimento do conceito de stress, que inicialmente foi denominado síndrome geral de adaptação. A implicação básica das idéias de Selye para a psicossomática é a descoberta de quanto e como o corpo se transforma sob o estresse. Neste sentido o estilo de vida atualmente é considerado como um importante fator para a saúde e prevenção da doença.
Por fim, Castro, Andrade e Muller (2006) demonstram o novo paradigma que vem buscando não apenas a integração mente/corpo, mas sim, uma nova forma de olhar a saúde e a doença, que é a Psiconeuroimunologia. Ela, “[...] tem suas origens no pensamento psicossomático e tem evoluído no sentido da realização de investigações de complexas interações entre a psique e o s sistemas nervoso, imune e endócrino” (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 41).
O texto, apesar de curto, é bastante didático e instrutivo sobre o tema que se propõe analisar. Apesar disso, senti falta das considerações sobre o conhecimento egípcio a respeito de saúde e doença que, em sua época, diferia muito das explicações gregas. O conhecimento anatômico do corpo humano certamente deram aos egípcios uma relação diferente com as categorias saúde/doença e corpo/mente(alma). Vale ressaltar que, por ser um texto de autoras aliadas à Psicanálise, esse não é um artigo que coloca em cheque a existência ou não da mente, tal qual a Análise do Comportamento o faz. Mas para início de conversa, é um texto excelente para iniciar discussões até hoje tão acaloradas no meio científico e filosófico.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Olhe o céu...


Tenho criado uma paixão obsessiva pelo céu.
Talvez seja o instinto demonstrando através da admiração a sua condição de servo.
Céu é liberdade.
Responsabilidade é servidão.
Ser livre é ser responsável.
E de tanto admirar o céu, descobri por que somos (sou) tão insatisfeitos.
No fundo, é por que até hoje não sabemos o que é ser livre
Justamente por não sabermos o que é liberdade.


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

“Homo Sedens”, de Marcia Tiburi: fazer e ter história exige seu preço

Se há uma coisa que detesto quando eu leio um texto é entrar em contato com autores citados aos quais eu nunca tive contato. E o texto de Marcia Tiburi me deu essa sensação. Afinal, fiquei doido para criticar o texto dela, mas sem saber quem Norval Baitello Junior (autor citado em seu texto) é, e sobre o que ele fala em suas obras, uma insegurança em relatar minhas opiniões me tomou. Pois bem, essa insegurança foi o combustível, ou seja, meu argumento maior para que eu ficasse parcialmente contra o que Marcia Tiburi quis dizer.


Marcia Tiburi é Graduada em filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1990), e em artes plásticas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996); mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1994) e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999) com ênfase em Filosofia Contemporânea. Seus principais temas são ética, estética e filosofia do conhecimento.
O texto em questão, Homo Sedens, foi publicado na edição 185 da Revista Cult, e trata da questão do nomadismo (nem sabia que essa palavra existia...) na nossa cultura atualmente. Marcia Tiburi retrata algo inquestionável nos dias de hoje: passamos a maior parte de nossas vidas sentados. Ao citar Norval Baitello Junior, e seu livro O pensamento sentado (Unisinos, 2012), Marcia consegue demonstrar o papel do “assento” (o de se sentar, por favor... acento agudo só se for com C) naquilo que ela chama de “cultura sedentária”.
Dessa forma, o assento teria na nossa cultura um papel crucial: nos domesticar, trasnformando-nos em corpos dóceis e mentes estagnadas. Assim, Marcia não vê problemas em considerar os nossos pensamentos (e comportamentos certamente) como “pensamento-bunda”[1], ou seja, um pensamento marcado por ser originado e desenvolvido no conforto da cadeira, atrás de um computador ou de um livro.
O primata que somos se ressente de não poder mover-se”. Negar a natureza em nome da disciplina. Esse é o ponto fundamental do texto de Marcia. Num momento histórico em que nos forçamos a seguir a disciplina, em prol de um reconhecimento social diante de um esforço por nós estabelecidos, nossa natureza essencialmente primata e, portanto, nômade estaria subjugada às amarras de uma cadeira. Para Marcia Tiburi, só há uma escapatória: fugir.
Ao ler o texto, não pude deixar de concordar com essas colocações. É fato consumado a noção de que as coisas caminham para esse lado realmente. Um privilégio dedicado antes apenas à elite aristocrática e à elite intelectual, hoje o “viver sentado” parece ter virado rotina comum de indivíduos das classes A, B e C da sociedade. Mas será que é algo tão ruim assim?
Infelizmente, não consigo considerar os fatos como apenas bons ou ruins: tal qual uma moeda, todos os fenômenos tem esses dois lados. E no caso do “sentar” não podia ser diferente. O que perderíamos se nossa cultura, de uma hora para outra, descobrisse (ou decidisse) que para pensar, a categoria comportamental “sentar” é apenas uma opção? Me parece que seríamos exatamente o que Márcia Tiburi quer defender: a volta da nossa condição originalmente e unicamente primata.
Considero hoje que um dos maiores ganhos de nossa cultura foi ter aprendido que a mera comunicação oral é espacial e temporalmente limitada. Isso por que a mera informação oral atinge poucas pessoas de uma vez só, e também dura por pouco tempo. Afinal, quem se lembra do que falou ontem, entre as 16:15 e as 16:37? Difícil não? Mas certo dia o homem descobriu a escrita. Descobriu que suas histórias, seus ensinamentos e seus costumes poderiam ser passados adiante sem dificuldade. No entanto, a escrita trouxe um probleminha contornável, mas chato: ela (a escrita) é muito possessiva. Geralmente, exige de quem a cria um longo momento de dedicação, algo que a comunicação oral não exige. A escrita ensinou ao homem o valor da disciplina. Em outras palavras, a escrita ensinou o homem a se sentar.
Hoje, há uma verdadeira canonização dos filósofos gregos que se jogavam ao ócio e começavam a filosofar oralmente. Algo romântico e até lindo. Sim, eu acho lindo! Mas não sejamos hipócritas. Quem conheceria hoje Socrátes, se não fosse a disciplina de Platão em se dispor a sentar e escrever sobre Sócrates? Provavelmente nem o conheceríamos. O que seria da história, se não houvessem homens empenhados a sentarem suas bundas atrás de uma mesa, para escreverem a história? Certamente, teríamos uma reinvenção da roda constante, e aí sim estaríamos onde Marcia Tiburi nos quer: fora dos automóveis, que não existiriam por que não saberíamos que uso uma roda teria.
Aqui. retorno ao que disse inicialmente: minha angustia por não ter lido Norval Baitello Junior. Meu texto final deve ter, agora, uma série de desentendimentos e incoerências horríveis. Mas me pergunto se essas incoerências existiriam se eu tivesse me proposto a sentar minha bunda e me debruçar sobre a obra desse autor (ui que frase sexy!)? Acredito que não. Por isso, receio mesmo que tenhamos nos tornado tão sedentários. Falo por mim mesmo, que muitas vezes perco de ver um céu e um pôr do sol tão lindos. Mas entre isso, Marcia Tiburi, e uma vida de primata, se balançando de galho em galho nas copas das árvores,  eu prefiro o “conforto” de minha cadeira e o prazer de ler tão belíssimo texto escrito por vossa senhoria.


Link do artigo
Homo Sedens


[1] Eu ri nessa parte. Sério! Marcia Tiburi já me ganhou com isso, pois adoro quem usa expressões geralmente polêmicas de forma tão natural. Afinal, o que tem demais em falar "bunda"? Gente... 

domingo, 24 de novembro de 2013

Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, de Luiz Felipe Pondé: um convite para sairmos da Zona de Conforto

Eu poderia dizer que ler Pondé é algo perigoso, que Pondé é um autor ácido, que ele um autor desprezível. Mas pelo contrário. Iniciarei essa resenha dizendo que Pondé me trouxe um alívio muito grande. Adiante, explicarei o porquê. O Guia Politicamente Incorreto da Filosofia é um livro de autoria de Luiz Felipe Pondé, escrito em 2012, com 24 capítulos mais a Introdução e o Apêndice. Desde então, o livro vem causado um mal-estar acompanhado de uma agitação muda por parte dos intelectuais brasileiros. De fato, é um livro que quebra a ordem dos discursos existentes na área das Ciências Humanas dentro da academia brasileira.

Pondé (2012) inicia seu texto dizendo ser um pecador, e logo fica clara a razão de tais palavras, pois Pondé se coloca claramente contra certas ideias já bem estabelecidas pela esquerda brasileira que vem, com o decorrer dos anos, se colocando como verdade imutável e inquestionável. Em suma, o pecado de Pondé é ser contra o Politicamente Correto (PC). Ao iniciar suas considerações, Pondé relata a Aristocracia como o modelo político baseado (inicialmente) na honra e na coragem, mas as deturpações causadas pelo dinheiro (tornando a Aristocracia um governo baseado em acúmulo de bens) mudaram a ordem do jogo, e trouxe os “covardes” para uma posição bastante privilegiada:  amparados pelos “fortes, que carregam o mundo nas costas”.
Tais considerações iniciais são os passos primeiros para a questão da Democracia, tão criticada por Pondé. Mas que fique claro: Pondé é a favor da Democracia sim, pois de todos os modelos políticos, ela seria o modelo menos pior. Mas Pondé não fecha os olhos para os problemas decorrentes dela. Para ele,
Uma coisa que salta aos olhos é a tentativa de chamar qualquer um que critique a democracia de antidemocrático. A sensibilidade democrática é 'dolorida', qualquer coisa ela grita. Mas não me engano com ela: esse 'grito' nada mais é do que a tentativa de impedir críticas que reduzam a vocação também tirânica que a democracia tem como regime 'do povo'. O 'povo' é sempre opressor, Rousseau e Marx são dois mentirosos. [...] Quando aparece politicamente, é para quebrar coisas. O povo adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo. Se der comida, casa e hospital, o povo faz qualquer coisa que você pedir. Confiar no povo como regulador da democracia é confiar nos bons modos de um leão à mesa. Só mentirosos e ignorantes têm orgasmos políticos com o 'povo' (Pondé, 2012).
Sua primeira crítica é em relação à Democracia como um “Estado de Direitos”. Para Pondé, “a tentativa de definir a democracia como “regime de direitos” é ridícula porque não existem direitos sem deveres, por isso a ideia de que piolhos ou frangos tenham direitos começa a aparecer quando separamos direitos de sua contrapartida anterior, os deveres” (Pondé, 2012). Como uma moedas de dois lados, a Democracia também tem duas faces. Em uma delas, está incrustada a insígnia “Liberdade”. Do outro lado, a palavra “Igualdade”. Mas engana-se quem pensa que tais características se demonstram mutuamente. Tal qual uma moeda que cai ao chão, mostrando portanto apenas um de seus dois lados, a Democracia também se caracterizaria por mostrar apenas um de seus lados. Para Pondé é, infelizmente, a Igualdade que se mostra mais hoje. A conta é simples: a Liberdade acentua diferenças e estimula criatividades; em contrapartida, a Igualdade nivela as diferenças e desestimula a criatividade. Por isso que, para Pondé, vivemos em um país (mundo?) de seres medíocres.
Quando você dá mais espaço para a liberdade, a tendência é de que a democracia acentue as diferenças entre as pessoas e os grupos que nela vivem. Mas a liberdade é a chave da capacidade criativa e empreendedora do homem. Quando você acentua a igualdade, a democracia ganha em nivelamento e perde em criatividade e geração de abundância para as pessoas (Pondé, 2012).
Num segundo momento, Pondé se propõe a falar do Outro, se colocando claramente contra o discurso dos que dizem amar a todos de maneira igual. “Quando os outros estão longe, do outro lado do oceano, é bonitinho amar todos os outros, mas, quando eles têm cheiro e hábitos outros, a coisa complica” (Pondé, 2012). Também se propõe a falar da ausência de indivíduos autônomos, devido à massificação constante que existe. Ninguém tem uma personalidade autônoma... E isso é muito visível numa sociedade que visa a estereotipação de costumes. Ser diferente é complicado. Na infância, descobrimos que é algo ruim e que traz punições, na vida adulta,aprendemos a necessidade de seguir padrões. A democracia, por agir a partir da massificação de opiniões, odeia a autonomia, a individualidade, a especialidade.
Posteriormente, temos as considerações sobre o Romantismo e a Natureza. Pondé abomina de forma explícita os românticos e amantes da natureza. Ou melhor, os utópicos, que sonham em voltar a “viver em árvores, tais quais os índios”. Aliás, Pondé claramente é contra a visão romantizada do índio como seres que devem ter seus costumes seguidos, devido ao amor que tem pela natureza.
Qualquer relação adulta com a natureza implica saber que ela gera e destrói, e, nesse sentido, nossos ancestrais eram mais adultos do que os retardados contemporâneos, pois cultuavam a natureza não porque viam nela uma pureza santinha, mas porque enxergavam o poder dos deuses ancestrais: beleza e crueldade. (Pondé, 2012)
No capítulo Sexualidade, mulheres e homens, Pondé faz críticas incisivas ao movimento feminista, principalmente no que para ele é um menosprezo de toda uma base biológica do comportamento humano (psicologia evolucionista). Mulheres, para Pondé, são seres que dependem da figura masculina, e ao negarem isso para si mesmas, sofrem por isso. Um exemplo de comportamento biologicamente herdado seria o caso das mulheres que se sentem obrigadas a comprovar sua fidelidade para segurar um parceiro. Em contrapartida, haveria, ainda sob esse viés evolucionista, uma insegurança no homem que o leva a garantir seu papel e sua obrigação para com a cria da mulher.  Em A beleza e a inveja, Pondé da continuação às críticas ao feminismo. Aqui, o feminismo teria um lado "inconsciente" altamente invejoso: já que há mulheres bonitas, e as feias são a maioria, o feminismo criado faz com que as bonitas não possam usar de sua beleza para conseguir o que querem. Para Pondé, o feminismo é, no fundo, um movimento criado por mulheres feias ressentidas.
Em Os funcionários da educação, do intelecto e da arte, Pondé relata o quanto os intelectuais são covardes na medida em que são inseguros sobre o conhecimento que possuem, o que os faz atacar os que pensam diferente. A insegurança faz com que os intelectuais se escondam atrás do muro das teorias estabelecidas. Isso garante o status. No capítulo Religiões, fundamentalismos e budismo light, Pondé destila suas críticas ao islamismo e ao budismo “zen”, que nas suas palavras, são assuntos que tornam qualquer pessoa melhor vista socialmente quando são religiões e culturas defendidas e vivenciadas, já que colocam em cheque a cultura americana dos costumes. Assim, falar mal do islamismo é algo ruim. Politicamente incorreto. Há determinadas crenças que podem ser criticadas. Outras não.
Já em Natureza humana e felicidade, é posto em cheque a bondade e a busca desenfreada pela felicidade. De acordo com Pondé,
Hoje em dia, uma das coisas mais queridas do politicamente correto é afirmar que não existe natureza humana. O homem e a mulher seriam “construídos social e historicamente”. Vimos uma ideia semelhante a essa no campo da sexualidade chamada de teoria de gênero. A praga PC gosta dessa afirmação porque ela passa a ideia de que podemos melhorar (seja lá que sentido tiver essa expressão “melhorar”) infinitamente intervindo “livremente” em nós mesmos construindo seres humanos “livres” de si mesmos. A raiz dessa crença também é a tentativa de superação da ideia de pecado como “DNA da natureza humana” nas suas mais variadas formas. A intenção é negar que exista qualquer limite ao desejo humano de se transformar, fazendo da vida humana uma espécie de “projeto contínuo do humano novo”. Por isso, afirmar que exista natureza humana por si só já soa politicamente incorreto, porque parece impor o limite que nossa adolescente modernidade detesta ver (Pondé, 2012).
Colocando e lado as ideias de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que veria o homem como naturalmente bom, Pondé prefere acreditar no que nos ensina Thomas Hobbes (1588-1679), que acredita ser o homem ruim por natureza, e a sociedade como um entrave a toda essa maldade. O Politicamente Correto colocaria o homem numa fantasia de anjo, livre de pecados e maldades. Se acaso um dia ele for agir de forma cruel, é por conta dos Outros que dominam o mundo. Em Teologia de esquerda ou da libertação, Pondé retoma essa questão a partir das novas perspectivas religiosas no catolicismo. De acordo com ele, essa roupagem angelical sobre o humano acarretou em uma mudança de paradigma: o homem não contém mais o mal em si (pecado). Sob um viés marxista, seria a sociedade que o domina, tornando-o mal.
Pondé ainda faz reflexões sobre a culpa, a justiça social e a ditadura nos capítulos subseqüentes. Em relação à culpa, ela seria apenas um elemento básico da socialização humana que o Politicamente Correto faz questão de esquecer. Já o problema com a justiça social é que esse conceito “[...] vale como angústia romântica, mas peca por falta de parâmetros racionais e concretos para realizá-lo” (Pondé, 2012). Utilizando o discurso dos esquerdistas, que a partir dos exemplos de países europeus que dão certo a partir da Justiça Social, Pondé destaca que é fácil haver justiça social num país de iguais com um contingente populacional e um espaço territorial pequeno. O que não é o caso do Brasil, onde a miscigenação, a diversidade e um espaço territorial vasto são características primeiras de nosso país. Por fim, Pondé dá um crédito à Ditadura Militar, cujo os efeitos são caracterizadas como uma “salvação nossa” que nos livros de um governo cuja exemplo atual seria a Cuba e sua ditadura esquerdista.
Dizem que em relação ao Pondé, das duas, uma: ou você o ama, ou você o odeia. Eu, que por gostar de estar na posição privilegiada dos “em cima do muro”, estou na metade do caminho entre o amor e o ódio por Pondé. Vários pontos de seus argumentos eu discordei, concordei com muitos e fiquei perplexo com a maioria. Algo que me deixou bastante desconfortável, foi sua posição a favor da ideia de uma “natureza humana original”. Sou um defensor daqueles que dizem ser o homem um animal que não tem natureza, mas sim, condição. Uma condição humana. Não sei se é ironia, mas Pondé parece acreditar de forma demasiada numa natureza humana que foge (ou vai além) dos aspectos biológicos. Seria uma influência de sua formação psicanalítica?
Outro ponto conflituoso foi quando Pondé deixa explícito o seu desconforto com a Democracia que “dá voz aos medíocres” para opinar sobre o mundo. Discordo dele nesse ponto. É óbvio que nem todos são cultos eruditamente para opinar sobre o mundo. Mas a capacidade reflexiva é algo que considero como um direito básico humano. Se eu tirar esse direito dos alunos de Engenharia (como no exemplo dado por Pondé em determinado ponto do livro), a capacidade criativa cessa, e uma nova ditadura se inicia. O pensamento (mesmo aquele não filosófico) estimula a criatividade e a liberdade.
Outro ponto que discordei é sobre a defesa de Pondé a favor dos testes em animais. Sou veementemente contrário a isso. Acredito que a ética (animal e humana) não impede os avanços da ciência. Pelo contrário, serve de guia, pois caso contrário, teríamos uma ciência cega.
No que diz respeito ao feminismo (contrapondo-o às descobertas evolucionistas), eu digo que fiquei perplexo, como uma paralisia muscular que nos atinge diante de um medo súbito. De fato, parece que fazer constatações biológicas sobre sexos adquire o tom de machismo em certo ponto. Até concordo com Pondé. Mas suas críticas parecem que recaem unicamente na classe intelectual, que colocam na sociedade todo o peso da culpa sobre a existência do machismo.  Mas fora do ambiente intelectual e acadêmico, sinto uma naturalização do que é papel de homem e papel de mulher. Isso me deixou perplexo e com a sensação de que a generalização foi demasiada e, por isso mesmo, equivocada. Mas que fique claro: Pondé defende os direitos das mulheres, mas não é a favor dos que dizem ser a mulher e o homem seres iguais (diferenciados “apenas” pelos órgãos genitais).
Também senti que a questão da beleza colocada aqui por Pondé foi muito superficial. Queria mais considerações históricas e biológicas do termo. Históricas, por que o modelo de beleza mudou muito com o tempo. Biológicas, por que em termos de seleção natural, uma mulher magra não simboliza o fértil e saudável; a mulher gorda representaria a saúde e a fertilidade, pois se alimentaria mais e teria um corpo mais forte capaz de suportar a brutalidade masculina. Pondé retratou muito bem essas questões no capítulo Sexualidade, mulheres e homens, mas agora parece que esqueceu de considerá-las no capítulo Beleza e inveja. A feia inveja a bonita. Mas de que feia ele fala? E por que mudar o padrão belo-feio é algo que parece irritá-lo?
Essas são minhas principais críticas e pontos conflituosos que o texto me deixou. Mas antes de fazer essas considerações eu deveria deixar meu agradecimento a Pondé. Há muito tempo sinto uma verdadeira ditadura tomar conta das discussões dentro da área das Ciências Humanas. São discussões mecanizadas, com jargões e frases já bem definidas e, quando colocadas no momento certo, são as palavras-chaves para o sucesso de uma palestra, ou debate ou discussão acadêmica. Mas Pondé resgata aquilo que mais estimo no ideal de Democracia: o falar sem medo da represália. Óbvio que não é isso que vemos na prática quando os discursos intelectuais são unificados. Mas duvido que seja considerado democrático um espaço onde o embate de ideias não existe, apenas um discurso fechado que usa do diálogo apenas como forma de se fortalecer e estabelecer permanentemente.
Por fim, cheguei à conclusão de que Pondé é para poucos e para todos. Para poucos, por que são poucos os que sentem esse incomodo atual que a Democracia real nos coloca: o poder falar apenas quando a fala for de concordância e não coloque em cheque a própria Democracia. Mas paradoxalmente é para todos, pois dá um verdadeiro “puxão de orelha” nos que não duvidam de suas verdades. Enfim, Pondé é para os que não temem sair de sua Zona de Conforto.

REFERÊNCIA
PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo : Leya, 2012.