Festas familiares são, para mim,
um verdadeiro treino de paciência e bons modos. Sou analítico por natureza e
crítico por criação, mas em eventos micro-sociais, preciso suspender qualquer
tipo de análise crítica para poder conviver sadiamente com os demais. Porém, a
quantidade de asneiras e abominações que escuto são absurdamente enormes. Ao
dizer isso, parece que me considero melhor que os outros, e de fato, eu mesmo
já pensei nisso. Não cheguei a conclusões definitivas, mas sei que minha
principal diferença nesse mundo é que penso demasiadamente no que digo,
característica essa que não ocorre com frequência na nossa sociedade
pós-moderna.
Pois bem, participei de uma
dessas festas familiares. Cerveja, churrasco e mandioca. Um clima bastante
agradável, festivo, alegre. Assuntos envolvendo crises familiares, piadas
homofóbicas (“mas é um bichinha mesmo”) e críticas ao jeito que determinada
mulher se vestia (“mas parecia uma vadia! Por isso não segura homem”). Enfim,
nada mais do que o esperado em uma festa familiar. E assumindo um lado mais
“fala que eu te escuto”, consegui escutar tudo e participar das conversas com
um sorriso no rosto.
Mas meu sorriso no rosto logo se
esvai quando escuto uma frase aleatória: “bom os tempos em que os policiais
matavam bandido e não tinha uma alma viva pra questionar!”. Me vi, de repente,
numa mesa rodeada de assassinos sanguinários que, movidos por medo, decidem
fazer justiça com as próprias mãos. “A polícia não pode fazer nada mais, que a
cambadinha dos Direitos Humanos caem em cima!”. O desejo inicial é que a
polícia, com todo o poder a eles investidos, possa agir como justiceiros,
punindo os cruéis vilões de nossa sociedade. Paulo Ghiraldelli já deixou isso
explícito em um artigo seu , ao demonstrar os perigos de se dar tanto poder à
polícia. Mas esse é apenas um perigo inicial. O perigo posterior é bem mais
terrível.
Vivemos tempos sombrios, onde a
opinião da maioria luta para ser capaz de definir o que (ou quem) pode ou não
viver. Já fizemos isso no passado. É graças ao acordo feito entre os homens que
hoje podemos ultrapassar o que a natureza nos dita em relação ao assassinato
(matar para comer). Podemos atualmente matar para vender. Lógico que é um
assassinato cheio de regras (apenas vacas, porcos, galinhas, ovelhas e
cabritos), mas que se permite uma vez ou outra passar um pouco dessas regras
(temporada de caça e pesca). Há outros casos especiais que burlam essa regra em
alguns países, por exemplo, onde a pena de morte (judicialmente afirmada) é
permitida. Enfim, expus esse caso para demonstrar o quanto a morte já foi e
pode ser ainda mais permitida e aceita sem “peso na consciência”.
Ora, defender que a polícia deve
agir sem que ninguém se intrometa, e mais, desejar ser um policial
inquestionável defensor dos “fracos e oprimidos”, é exatamente o princípio de
uma ditadura onde a maioria exerce de maneira selvagem o poder sobre quem não
se agrega ou destoa das concepções defendidas pelas massas. Pode parecer
exagero pensar assim, e eu gostaria de realmente estar exagerando. Mas a
realidade não me permite sonhar tanto assim. Não quero alongar esse texto, mas
para notar como a sociedade democrática tem dado espaço para algo que eu chamaria
de “selvageria massificada”, quero citar a dificuldade que os discursos
diferentes do estipulado pelo atual status
quo têm em se colocar no meio acadêmico, onde a premissa básica é criticar
a tudo e a todos, menos às concepções marxistas. Mesmo que você nunca tenha
lido Karl Marx, é seu dever se posicionar como marxista. Quis dar um exemplo
acadêmico para que possamos ver que mesmo a nossa “elite intelectual” tem dado
vazão a um posicionamento selvagem a tudo que se contrapõe a ela. É um assunto
que rende outro texto, no entanto.
O que precisamos ver agora aqui
é como temos caminhado a passos rápidos para uma sociedade onde a vida do
indivíduo é sempre posta em cheque pelo seu meio social. Num bairro onde há a
suspeita de bandidagem, o suspeito em questão terá sorte se sobreviver há um
julgamento socialmente selvagem. Não é o que temos hoje (de forma explicitamente
estabelecida), mas é o que deseja nossa sociedade que luta por “acabar com o
mal pela raiz”.
Como estudante de Psicologia, é
engraçado notar que, de fato, sociedade e indivíduo são instâncias
indivisíveis. Leio sobre questões sociais e chego a duvidar delas, até entrar
em contato com o cotidiano: palco onde todas as ideologias sociais encenam um
teatro não fictício através do indivíduo comum. Hoje, uma peça cujo título é “Bandido
bom é bandido morto”, amanhã, uma peça intitulada “Concorde com todos se quiser
viver”. Mas o pior de tudo é saber que hoje, como defensor dos Direitos
Humanos, sou considerado uma ameaça à família justamente por que na opinião da
maioria, eu só quero “defender bandido”. Tudo bem. Não tenho problemas com isso
hoje. Mas em relação ao amanhã, só espero morrer de causas naturais (ou seja,
sem tortura) antes dos 35, por que depois disso...

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