Eu poderia falar do dia 20 de
novembro, felicitar a todos os negros, negras e a cultura afrobrasileira como
um todo. Poderia, mas não vou fazer isso. Ao contrário, falarei dos outros 364
dias do ano, onde essa homenagem não ocorre tão explicitamente (eu acho que nem
implicitamente ocorre, mas ok, tentarei ser otimista...).
E o que nós vemos nos outros
dias do ano? Vemos uma grande violência com os negros por parte de quem deveria
nos defender; vemos senhores donos de estabelecimentos comerciais negando
trabalhadoras e trabalhadores negros; vemos classes “intelectuais” negando o
direito dos negros às cotas estudantis; vemos vários Amarildo’s sem a
possibilidade de provar sua inocência... Ou seja, não admito quem diga que o
preconceito é algo que foi dizimado (ou enfraquecido) em nosso país. Casos tão
explícitos assim calam a boca até mesmo dos que são a favor de um “Dia da
Consciência Humana” (seja lá o que isso queira dizer...). Mas apesar de ser
esse o preconceito que mais vemos (justamente pelo fato de que é isso o “visível”),
esquecemos de outros comportamentos que não são apenas tão violentos quanto,
mas sim, mais violentos do que o preconceito explícito em forma de violência
física e verbal.
Há uma famosa frase de Martin
Luther King que diz "O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos,
dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa
é o silêncio dos bons.” Notem que o adjetivo “bons” é usado como sinônimo de “inocente”,
pois quem é inocente não é corrupto, não é violento, tem ética, tem moral, tem
honra. Uma frase louvável, mas que sou obrigado a discordar. Não consigo ver os
“bons” como aqueles que estão em silêncio. Pelo contrário, os “bons” falam
muito, gritam muito, esbravejam muito, violentam muito. Tenho o costume de dizer que temo muito mais
o “cidadão de bem” do que alguém considerado “mal”. A lógica nesse contexto do
preconceito para os negros é o mesmo: “cidadão de bem” são inocentes por que
não “participam” (no sentido mais ativo da palavra) daquilo que é preconceito.
O inocente cidadão de bem tem, inclusive, vários amigos negros, convive com
negros, conversa com negros, e muitas vezes é até subordinado de alguém negro.
No entanto, é o “inocente
cidadão de bem” que considero hoje o terror de todos nós que não seguimos o
padrão branco-ou-oriental. É o “inocente cidadão de bem” que joga na cara dos
negros todo dia que, caso eles vençam na vida, é por que “agiram que nem
brancos” ou tiveram “sorte”. Um negro (para o “inocente cidadão de bem”) nunca
vencerá por méritos próprios. Sua “negritude” o impede disso.
É o “inocente cidadão de bem”
que insinua dia após dia aos seus amigos negros que estes são privilegiados com
essa “ilustre amizade”. Um negro não vem a ser amigo de um “inocente cidadão de
bem” à toa; é o cidadão de bem que foi caridoso em oferecer tal amizade. Além
disso, é o “inocente cidadão de bem”, que em sua ingenuidade sádica, diz que é inadmissível
um dia da Consciência Negra, afinal “os negros já são meus amigos, o que querem
mais?”.
Aliás, se tem algo que eu julgo
mais aterrorizante é quando um “inocente cidadão de bem” diz: eu gosto de
negros, MAS... Isso! Isso sim é aterrorizante! Negros podem ter várias
qualidades, no entanto o advérbio de adversidade “mas” virou quase um adjetivo!
Negros são legais, mas... Negros são bacanas, mas... Tenho até um calafrio na
espinha quando tenho contato com “inocentes cidadãos de bem” e eles soltam
comentários do tipo “Eu não sou racista. Tenho até vários amigos negros. MAS
vamos combinar, tem uns que são bem nojentos, neh?”.
São essas violências implícitas
que somos obrigados a conviver inclusive com quem é afetivamente mais próximo a
nós, e que é, ao mesmo tempo, a violência mais cruel. Conviver com brancos sem
restrições foi (e está sendo) uma conquista grande. Mas ao mesmo tempo, foi o
pior dos castigos. Ser obrigado a escutar e sentir insinuações de que, se você
é bom em algo, com certeza teve dificuldade por ser negro é uma violência
enorme. Ser uma mulher negra obrigada a conviver com amigas brancas que jogam
na cara que o ideal de beleza está longe da realidade negra é uma violência
grande também. Descobrir que a sua higiene é na verdade uma anormalidade diante
do padrão “negros são nojentos” é algo certamente horrível. E pior, descobrir
que você foi um “negro de sorte” é algo que considero como uma dor irreparável.
Hoje é um dia louvável
realmente. Não deixaremos de ouvir “inocentes cidadãos de bem” falando suas
barbaridades. Mas certamente, hoje eles estarão menos “afiados” (como diz minha
avó). Creio eu, pelo menos. Não tenho respostas de como lidar com essa situação
que envolve todas as micro-relações. Mas espero que hoje os negros utilizem do
artifício do MAS a seu favor: “sou negro, mas tenho como amigos inocentes
cidadãos de bem”. Gosto quando a ordem do jogo muda um pouco. Mas é triste
saber que amanhã, muitos ouvirão “olha, você até que é limpinho, mas conheci um
negro tão nojento ontem... não sou racista, mas senti nojo.”
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