quarta-feira, 20 de novembro de 2013

20 de novembro – Dia do “Gosto de gente negra, mas..."

Eu poderia falar do dia 20 de novembro, felicitar a todos os negros, negras e a cultura afrobrasileira como um todo. Poderia, mas não vou fazer isso. Ao contrário, falarei dos outros 364 dias do ano, onde essa homenagem não ocorre tão explicitamente (eu acho que nem implicitamente ocorre, mas ok, tentarei ser otimista...).
E o que nós vemos nos outros dias do ano? Vemos uma grande violência com os negros por parte de quem deveria nos defender; vemos senhores donos de estabelecimentos comerciais negando trabalhadoras e trabalhadores negros; vemos classes “intelectuais” negando o direito dos negros às cotas estudantis; vemos vários Amarildo’s sem a possibilidade de provar sua inocência... Ou seja, não admito quem diga que o preconceito é algo que foi dizimado (ou enfraquecido) em nosso país. Casos tão explícitos assim calam a boca até mesmo dos que são a favor de um “Dia da Consciência Humana” (seja lá o que isso queira dizer...). Mas apesar de ser esse o preconceito que mais vemos (justamente pelo fato de que é isso o “visível”), esquecemos de outros comportamentos que não são apenas tão violentos quanto, mas sim, mais violentos do que o preconceito explícito em forma de violência física e verbal.
Há uma famosa frase de Martin Luther King que diz "O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons.” Notem que o adjetivo “bons” é usado como sinônimo de “inocente”, pois quem é inocente não é corrupto, não é violento, tem ética, tem moral, tem honra. Uma frase louvável, mas que sou obrigado a discordar. Não consigo ver os “bons” como aqueles que estão em silêncio. Pelo contrário, os “bons” falam muito, gritam muito, esbravejam muito, violentam muito.  Tenho o costume de dizer que temo muito mais o “cidadão de bem” do que alguém considerado “mal”. A lógica nesse contexto do preconceito para os negros é o mesmo: “cidadão de bem” são inocentes por que não “participam” (no sentido mais ativo da palavra) daquilo que é preconceito. O inocente cidadão de bem tem, inclusive, vários amigos negros, convive com negros, conversa com negros, e muitas vezes é até subordinado de alguém negro.
No entanto, é o “inocente cidadão de bem” que considero hoje o terror de todos nós que não seguimos o padrão branco-ou-oriental. É o “inocente cidadão de bem” que joga na cara dos negros todo dia que, caso eles vençam na vida, é por que “agiram que nem brancos” ou tiveram “sorte”. Um negro (para o “inocente cidadão de bem”) nunca vencerá por méritos próprios. Sua “negritude” o impede disso.
É o “inocente cidadão de bem” que insinua dia após dia aos seus amigos negros que estes são privilegiados com essa “ilustre amizade”. Um negro não vem a ser amigo de um “inocente cidadão de bem” à toa; é o cidadão de bem que foi caridoso em oferecer tal amizade. Além disso, é o “inocente cidadão de bem”, que em sua ingenuidade sádica, diz que é inadmissível um dia da Consciência Negra, afinal “os negros já são meus amigos, o que querem mais?”.
Aliás, se tem algo que eu julgo mais aterrorizante é quando um “inocente cidadão de bem” diz: eu gosto de negros, MAS... Isso! Isso sim é aterrorizante! Negros podem ter várias qualidades, no entanto o advérbio de adversidade “mas” virou quase um adjetivo! Negros são legais, mas... Negros são bacanas, mas... Tenho até um calafrio na espinha quando tenho contato com “inocentes cidadãos de bem” e eles soltam comentários do tipo “Eu não sou racista. Tenho até vários amigos negros. MAS vamos combinar, tem uns que são bem nojentos, neh?”.
São essas violências implícitas que somos obrigados a conviver inclusive com quem é afetivamente mais próximo a nós, e que é, ao mesmo tempo, a violência mais cruel. Conviver com brancos sem restrições foi (e está sendo) uma conquista grande. Mas ao mesmo tempo, foi o pior dos castigos. Ser obrigado a escutar e sentir insinuações de que, se você é bom em algo, com certeza teve dificuldade por ser negro é uma violência enorme. Ser uma mulher negra obrigada a conviver com amigas brancas que jogam na cara que o ideal de beleza está longe da realidade negra é uma violência grande também. Descobrir que a sua higiene é na verdade uma anormalidade diante do padrão “negros são nojentos” é algo certamente horrível. E pior, descobrir que você foi um “negro de sorte” é algo que considero como uma dor irreparável.

Hoje é um dia louvável realmente. Não deixaremos de ouvir “inocentes cidadãos de bem” falando suas barbaridades. Mas certamente, hoje eles estarão menos “afiados” (como diz minha avó). Creio eu, pelo menos. Não tenho respostas de como lidar com essa situação que envolve todas as micro-relações. Mas espero que hoje os negros utilizem do artifício do MAS a seu favor: “sou negro, mas tenho como amigos inocentes cidadãos de bem”. Gosto quando a ordem do jogo muda um pouco. Mas é triste saber que amanhã, muitos ouvirão “olha, você até que é limpinho, mas conheci um negro tão nojento ontem... não sou racista, mas senti nojo.”

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