domingo, 24 de novembro de 2013

Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, de Luiz Felipe Pondé: um convite para sairmos da Zona de Conforto

Eu poderia dizer que ler Pondé é algo perigoso, que Pondé é um autor ácido, que ele um autor desprezível. Mas pelo contrário. Iniciarei essa resenha dizendo que Pondé me trouxe um alívio muito grande. Adiante, explicarei o porquê. O Guia Politicamente Incorreto da Filosofia é um livro de autoria de Luiz Felipe Pondé, escrito em 2012, com 24 capítulos mais a Introdução e o Apêndice. Desde então, o livro vem causado um mal-estar acompanhado de uma agitação muda por parte dos intelectuais brasileiros. De fato, é um livro que quebra a ordem dos discursos existentes na área das Ciências Humanas dentro da academia brasileira.

Pondé (2012) inicia seu texto dizendo ser um pecador, e logo fica clara a razão de tais palavras, pois Pondé se coloca claramente contra certas ideias já bem estabelecidas pela esquerda brasileira que vem, com o decorrer dos anos, se colocando como verdade imutável e inquestionável. Em suma, o pecado de Pondé é ser contra o Politicamente Correto (PC). Ao iniciar suas considerações, Pondé relata a Aristocracia como o modelo político baseado (inicialmente) na honra e na coragem, mas as deturpações causadas pelo dinheiro (tornando a Aristocracia um governo baseado em acúmulo de bens) mudaram a ordem do jogo, e trouxe os “covardes” para uma posição bastante privilegiada:  amparados pelos “fortes, que carregam o mundo nas costas”.
Tais considerações iniciais são os passos primeiros para a questão da Democracia, tão criticada por Pondé. Mas que fique claro: Pondé é a favor da Democracia sim, pois de todos os modelos políticos, ela seria o modelo menos pior. Mas Pondé não fecha os olhos para os problemas decorrentes dela. Para ele,
Uma coisa que salta aos olhos é a tentativa de chamar qualquer um que critique a democracia de antidemocrático. A sensibilidade democrática é 'dolorida', qualquer coisa ela grita. Mas não me engano com ela: esse 'grito' nada mais é do que a tentativa de impedir críticas que reduzam a vocação também tirânica que a democracia tem como regime 'do povo'. O 'povo' é sempre opressor, Rousseau e Marx são dois mentirosos. [...] Quando aparece politicamente, é para quebrar coisas. O povo adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo. Se der comida, casa e hospital, o povo faz qualquer coisa que você pedir. Confiar no povo como regulador da democracia é confiar nos bons modos de um leão à mesa. Só mentirosos e ignorantes têm orgasmos políticos com o 'povo' (Pondé, 2012).
Sua primeira crítica é em relação à Democracia como um “Estado de Direitos”. Para Pondé, “a tentativa de definir a democracia como “regime de direitos” é ridícula porque não existem direitos sem deveres, por isso a ideia de que piolhos ou frangos tenham direitos começa a aparecer quando separamos direitos de sua contrapartida anterior, os deveres” (Pondé, 2012). Como uma moedas de dois lados, a Democracia também tem duas faces. Em uma delas, está incrustada a insígnia “Liberdade”. Do outro lado, a palavra “Igualdade”. Mas engana-se quem pensa que tais características se demonstram mutuamente. Tal qual uma moeda que cai ao chão, mostrando portanto apenas um de seus dois lados, a Democracia também se caracterizaria por mostrar apenas um de seus lados. Para Pondé é, infelizmente, a Igualdade que se mostra mais hoje. A conta é simples: a Liberdade acentua diferenças e estimula criatividades; em contrapartida, a Igualdade nivela as diferenças e desestimula a criatividade. Por isso que, para Pondé, vivemos em um país (mundo?) de seres medíocres.
Quando você dá mais espaço para a liberdade, a tendência é de que a democracia acentue as diferenças entre as pessoas e os grupos que nela vivem. Mas a liberdade é a chave da capacidade criativa e empreendedora do homem. Quando você acentua a igualdade, a democracia ganha em nivelamento e perde em criatividade e geração de abundância para as pessoas (Pondé, 2012).
Num segundo momento, Pondé se propõe a falar do Outro, se colocando claramente contra o discurso dos que dizem amar a todos de maneira igual. “Quando os outros estão longe, do outro lado do oceano, é bonitinho amar todos os outros, mas, quando eles têm cheiro e hábitos outros, a coisa complica” (Pondé, 2012). Também se propõe a falar da ausência de indivíduos autônomos, devido à massificação constante que existe. Ninguém tem uma personalidade autônoma... E isso é muito visível numa sociedade que visa a estereotipação de costumes. Ser diferente é complicado. Na infância, descobrimos que é algo ruim e que traz punições, na vida adulta,aprendemos a necessidade de seguir padrões. A democracia, por agir a partir da massificação de opiniões, odeia a autonomia, a individualidade, a especialidade.
Posteriormente, temos as considerações sobre o Romantismo e a Natureza. Pondé abomina de forma explícita os românticos e amantes da natureza. Ou melhor, os utópicos, que sonham em voltar a “viver em árvores, tais quais os índios”. Aliás, Pondé claramente é contra a visão romantizada do índio como seres que devem ter seus costumes seguidos, devido ao amor que tem pela natureza.
Qualquer relação adulta com a natureza implica saber que ela gera e destrói, e, nesse sentido, nossos ancestrais eram mais adultos do que os retardados contemporâneos, pois cultuavam a natureza não porque viam nela uma pureza santinha, mas porque enxergavam o poder dos deuses ancestrais: beleza e crueldade. (Pondé, 2012)
No capítulo Sexualidade, mulheres e homens, Pondé faz críticas incisivas ao movimento feminista, principalmente no que para ele é um menosprezo de toda uma base biológica do comportamento humano (psicologia evolucionista). Mulheres, para Pondé, são seres que dependem da figura masculina, e ao negarem isso para si mesmas, sofrem por isso. Um exemplo de comportamento biologicamente herdado seria o caso das mulheres que se sentem obrigadas a comprovar sua fidelidade para segurar um parceiro. Em contrapartida, haveria, ainda sob esse viés evolucionista, uma insegurança no homem que o leva a garantir seu papel e sua obrigação para com a cria da mulher.  Em A beleza e a inveja, Pondé da continuação às críticas ao feminismo. Aqui, o feminismo teria um lado "inconsciente" altamente invejoso: já que há mulheres bonitas, e as feias são a maioria, o feminismo criado faz com que as bonitas não possam usar de sua beleza para conseguir o que querem. Para Pondé, o feminismo é, no fundo, um movimento criado por mulheres feias ressentidas.
Em Os funcionários da educação, do intelecto e da arte, Pondé relata o quanto os intelectuais são covardes na medida em que são inseguros sobre o conhecimento que possuem, o que os faz atacar os que pensam diferente. A insegurança faz com que os intelectuais se escondam atrás do muro das teorias estabelecidas. Isso garante o status. No capítulo Religiões, fundamentalismos e budismo light, Pondé destila suas críticas ao islamismo e ao budismo “zen”, que nas suas palavras, são assuntos que tornam qualquer pessoa melhor vista socialmente quando são religiões e culturas defendidas e vivenciadas, já que colocam em cheque a cultura americana dos costumes. Assim, falar mal do islamismo é algo ruim. Politicamente incorreto. Há determinadas crenças que podem ser criticadas. Outras não.
Já em Natureza humana e felicidade, é posto em cheque a bondade e a busca desenfreada pela felicidade. De acordo com Pondé,
Hoje em dia, uma das coisas mais queridas do politicamente correto é afirmar que não existe natureza humana. O homem e a mulher seriam “construídos social e historicamente”. Vimos uma ideia semelhante a essa no campo da sexualidade chamada de teoria de gênero. A praga PC gosta dessa afirmação porque ela passa a ideia de que podemos melhorar (seja lá que sentido tiver essa expressão “melhorar”) infinitamente intervindo “livremente” em nós mesmos construindo seres humanos “livres” de si mesmos. A raiz dessa crença também é a tentativa de superação da ideia de pecado como “DNA da natureza humana” nas suas mais variadas formas. A intenção é negar que exista qualquer limite ao desejo humano de se transformar, fazendo da vida humana uma espécie de “projeto contínuo do humano novo”. Por isso, afirmar que exista natureza humana por si só já soa politicamente incorreto, porque parece impor o limite que nossa adolescente modernidade detesta ver (Pondé, 2012).
Colocando e lado as ideias de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que veria o homem como naturalmente bom, Pondé prefere acreditar no que nos ensina Thomas Hobbes (1588-1679), que acredita ser o homem ruim por natureza, e a sociedade como um entrave a toda essa maldade. O Politicamente Correto colocaria o homem numa fantasia de anjo, livre de pecados e maldades. Se acaso um dia ele for agir de forma cruel, é por conta dos Outros que dominam o mundo. Em Teologia de esquerda ou da libertação, Pondé retoma essa questão a partir das novas perspectivas religiosas no catolicismo. De acordo com ele, essa roupagem angelical sobre o humano acarretou em uma mudança de paradigma: o homem não contém mais o mal em si (pecado). Sob um viés marxista, seria a sociedade que o domina, tornando-o mal.
Pondé ainda faz reflexões sobre a culpa, a justiça social e a ditadura nos capítulos subseqüentes. Em relação à culpa, ela seria apenas um elemento básico da socialização humana que o Politicamente Correto faz questão de esquecer. Já o problema com a justiça social é que esse conceito “[...] vale como angústia romântica, mas peca por falta de parâmetros racionais e concretos para realizá-lo” (Pondé, 2012). Utilizando o discurso dos esquerdistas, que a partir dos exemplos de países europeus que dão certo a partir da Justiça Social, Pondé destaca que é fácil haver justiça social num país de iguais com um contingente populacional e um espaço territorial pequeno. O que não é o caso do Brasil, onde a miscigenação, a diversidade e um espaço territorial vasto são características primeiras de nosso país. Por fim, Pondé dá um crédito à Ditadura Militar, cujo os efeitos são caracterizadas como uma “salvação nossa” que nos livros de um governo cuja exemplo atual seria a Cuba e sua ditadura esquerdista.
Dizem que em relação ao Pondé, das duas, uma: ou você o ama, ou você o odeia. Eu, que por gostar de estar na posição privilegiada dos “em cima do muro”, estou na metade do caminho entre o amor e o ódio por Pondé. Vários pontos de seus argumentos eu discordei, concordei com muitos e fiquei perplexo com a maioria. Algo que me deixou bastante desconfortável, foi sua posição a favor da ideia de uma “natureza humana original”. Sou um defensor daqueles que dizem ser o homem um animal que não tem natureza, mas sim, condição. Uma condição humana. Não sei se é ironia, mas Pondé parece acreditar de forma demasiada numa natureza humana que foge (ou vai além) dos aspectos biológicos. Seria uma influência de sua formação psicanalítica?
Outro ponto conflituoso foi quando Pondé deixa explícito o seu desconforto com a Democracia que “dá voz aos medíocres” para opinar sobre o mundo. Discordo dele nesse ponto. É óbvio que nem todos são cultos eruditamente para opinar sobre o mundo. Mas a capacidade reflexiva é algo que considero como um direito básico humano. Se eu tirar esse direito dos alunos de Engenharia (como no exemplo dado por Pondé em determinado ponto do livro), a capacidade criativa cessa, e uma nova ditadura se inicia. O pensamento (mesmo aquele não filosófico) estimula a criatividade e a liberdade.
Outro ponto que discordei é sobre a defesa de Pondé a favor dos testes em animais. Sou veementemente contrário a isso. Acredito que a ética (animal e humana) não impede os avanços da ciência. Pelo contrário, serve de guia, pois caso contrário, teríamos uma ciência cega.
No que diz respeito ao feminismo (contrapondo-o às descobertas evolucionistas), eu digo que fiquei perplexo, como uma paralisia muscular que nos atinge diante de um medo súbito. De fato, parece que fazer constatações biológicas sobre sexos adquire o tom de machismo em certo ponto. Até concordo com Pondé. Mas suas críticas parecem que recaem unicamente na classe intelectual, que colocam na sociedade todo o peso da culpa sobre a existência do machismo.  Mas fora do ambiente intelectual e acadêmico, sinto uma naturalização do que é papel de homem e papel de mulher. Isso me deixou perplexo e com a sensação de que a generalização foi demasiada e, por isso mesmo, equivocada. Mas que fique claro: Pondé defende os direitos das mulheres, mas não é a favor dos que dizem ser a mulher e o homem seres iguais (diferenciados “apenas” pelos órgãos genitais).
Também senti que a questão da beleza colocada aqui por Pondé foi muito superficial. Queria mais considerações históricas e biológicas do termo. Históricas, por que o modelo de beleza mudou muito com o tempo. Biológicas, por que em termos de seleção natural, uma mulher magra não simboliza o fértil e saudável; a mulher gorda representaria a saúde e a fertilidade, pois se alimentaria mais e teria um corpo mais forte capaz de suportar a brutalidade masculina. Pondé retratou muito bem essas questões no capítulo Sexualidade, mulheres e homens, mas agora parece que esqueceu de considerá-las no capítulo Beleza e inveja. A feia inveja a bonita. Mas de que feia ele fala? E por que mudar o padrão belo-feio é algo que parece irritá-lo?
Essas são minhas principais críticas e pontos conflituosos que o texto me deixou. Mas antes de fazer essas considerações eu deveria deixar meu agradecimento a Pondé. Há muito tempo sinto uma verdadeira ditadura tomar conta das discussões dentro da área das Ciências Humanas. São discussões mecanizadas, com jargões e frases já bem definidas e, quando colocadas no momento certo, são as palavras-chaves para o sucesso de uma palestra, ou debate ou discussão acadêmica. Mas Pondé resgata aquilo que mais estimo no ideal de Democracia: o falar sem medo da represália. Óbvio que não é isso que vemos na prática quando os discursos intelectuais são unificados. Mas duvido que seja considerado democrático um espaço onde o embate de ideias não existe, apenas um discurso fechado que usa do diálogo apenas como forma de se fortalecer e estabelecer permanentemente.
Por fim, cheguei à conclusão de que Pondé é para poucos e para todos. Para poucos, por que são poucos os que sentem esse incomodo atual que a Democracia real nos coloca: o poder falar apenas quando a fala for de concordância e não coloque em cheque a própria Democracia. Mas paradoxalmente é para todos, pois dá um verdadeiro “puxão de orelha” nos que não duvidam de suas verdades. Enfim, Pondé é para os que não temem sair de sua Zona de Conforto.

REFERÊNCIA
PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo : Leya, 2012.

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