1 – Introdução
Com o advento da sociedade capitalista, surgiu um fenômeno pouco visto
em épocas anteriores: o consumo compulsivo. Comprar desenfreadamente o que não
se precisa, jogar fora o que é considerado descartável e inutilizado (mesmo que
na realidade tal bem de consumo esteja completamente apto a ser consumido por
algum tempo), e etc., são alguns dos
exemplos mais rotineiros em nossa realidade, e talvez até nos identifiquemos
com tal situação. Afinal,dos mais velhos aos mais jovens, quem não se sente
seduzido pelas notícias constantes de “novos produtos” (que de novo não tem
nada) prometendo “acabar com todos os nossos problemas”?
É óbvio que a nossa sociedade capitalista, para sobreviver, necessita
de pessoas que consumam, e não apenas aquilo que ainda não têm, ou o que precisam.
É necessário consumir inclusive aquilo que é desnecessário ou que não se
precisa por já possuí-lo. Dessa forma, estar atualizado é uma constante necessidade
em nossa cultura, necessidade essa que só é saciada com a compra desenfreada de
bens de consumo.
A necessidade de fazer com que a economia jamais fique estática fez com
que se criasse a ideia de “consumo como algo imprescindível para existência
humana”. De certa forma, tal postulado não é errado, pois somos seres
consumidores por natureza, nossa sobrevivência depende daquilo que o ambiente
nos oferece. Mas tal ideia de consumo alcançou níveis alarmantes, ocasionando
na noção em voga na sociedade atual que, a saber, diz respeito à capacidade
aquisitiva como um meio de classificação dos sujeitos, onde a quantidade e a
qualidade do consumo estabelecem as categorias sociais existentes na atualidade.
Mas afinal, onde fica o sujeito nessa história? Como ele lida com as
particularidades que a sociedade capitalista pós-moderna lhe oferece como
mecanismos de existência?
2 – O Capitalismo e a Ideologia do “Ter para Ser”
De acordo com Marx (1989 apud TEIXEIRA e COUTO, 2010, p. 584), cada
época se diferenciou por modos de produção específicos que delimitavam e
estabeleciam o crescimento econômico de cada sociedade. Dessa forma, “(...) a
pré-história da civilização humana, orientada pela produção rural e artesanal,
é superada pelas relações de produção burguesas a partir do século XVIII, com a
Revolução Industrial” (TEIXEIRA e COUTO, 2010, p. 584). Com essa mudança no
modo de produção, há uma reviravolta nas relações de trabalho e nas formas de
consumo. A atividade produtiva sai do quadro familiar e divide-se em atividades
técnicas limitadas, visando puramente o crescimento econômico através da
produção em larga escala. Tem-se assim um ambiente propício para a vinda do
capitalismo e a posterior Cultura de Consumo como efeito do primeiro.
Para Lima (2002), o capitalismo controla a todos de maneira
inconsciente, influenciando pensamentos e ações. “Sua função é produzir desde
coisas até idéias, valores e crenças que se situam no lugar da causa do desejo
humano. Portanto, a função ideológica do sistema capitalista serve tanto para
justificar suas contradições quanto para disfarçar sua radical falta de ética.”
(LIMA, 2002, p. 41). Dessa forma, Lima (2002) enfatiza o fato de que o capitalismo
transforma os sujeitos, tirando-lhes a autonomia e transformando-lhes em meros
objetos consumistas, alimentados pela ilusão de liberdade e satisfação.
A incessante angustia de se ver excluído e o desejo profundo de estar
incluído são sentimentos que andam de mão dadas rotineiramente para o sujeito.
Em um ambiente onde o Ter supera o Ser, o sujeito se vê compelido a
consumir cada vez mais para que assim ele “seja” alguma coisa na sociedade a
partir daquilo que ele tem. “Não ter é se tornar marginal ao sistema. Em
verdade, a operação capitalista faz o objeto agir amarrando o sujeito” (LIMA,
2002, p. 42). Basta refletirmos um pouco para notarmos que o principal segredo
do capitalismo é manter os sujeitos sempre em falta, sempre desejando algo que
eles mesmos não sabem o que é, para que quem sabe um dia alcance aquilo que
tanto procura.
3 – A Cultura
do Narcisismo e a Sociedade do Espetáculo: possibilidade de explicação do
fenômeno do consumismo compulsivo
De acordo com Birman (2003 apud STACECHEN e BENTO, 2008), a
psicopatologia da pós-modernidade é pautada na cultura do narcisismo e da
chamada Sociedade do Espetáculo. A
partir dessas proposições, é correto dizer que atualmente o indivíduo
pós-moderno busca a exaltação do eu, usando de todos os mecanismos disponíveis
ao seu alcance para aparecer no cenário social. Esses mecanismos incluem a
preocupação estética com a aparência e o uso do outro como fonte de prazer
próprio.
O sujeito da contemporaneidade projeta a
imagem dos papéis que ele próprio interpreta no cenário social com o objetivo
de atingir a “inflação” do eu. Assim, os mesmos papéis assumidos pelos
indivíduos nos meios sociais adquirem a função de “máscaras a serem vestidas”
em massa para capturar uma espécie admiração padronizada enquanto ideal social.
(STACECHEN e BENTO, 2008, p. 424)
Dessa forma, o indivíduo da pós-modernidade é caracterizado, de acordo
com Stacechen e Bento (2008), pela sua busca incessante de uma exterioridade
admirada pelo ambiente social. No entanto, é óbvio que tal objetivo não é
sempre alcançado por todos, e Birman (2003 apud STACECHEN e BENTO, 2008)
salienta a existência de pelo menos duas psicopatologias próprias da
pós-modernidade que evidenciam o fracasso que o indivíduo tem ao não ser
admirado socialmente. São elas a Depressão e a Síndrome do Pânico, que seriam
os sintomas do “fracasso da participação do sujeito nesta cultura narcísica”.
Ora, se a Cultura do Narcisismo dita que o indivíduo deve se preocupar
única e totalmente com o seu exterior, seria certo pensar que o consumismo
compulsivo seria um dos mecanismos que permitem essa ostentação e admiração
social? Tudo indica que sim. Parece óbvio que a busca de bens de consumo são
meios mais que eficazes de conquistar essa admiração pelo outro no nosso atual
contexto pós-moderno.Isso é o que Stacechen e Bento (2008) denominam como
“estetização da existência”, que tem como ponto de partida a busca dessa admiração
padronizada pelo social.
Aparentemente, tal busca parece que tem um final feliz, pelo menos
àqueles que têm a possibilidade de consumir de forma compulsiva sem interrupções.
É dito isso por que são tais sujeitos que demonstram em nossa sociedade serem
os indivíduos mais felizes existentes, que estão sempre com um sorriso no rosto
e renovando o semblante feliz a cada novo bem de consumo adquirido.
Em Mal Estar das Civilizações, Freud salienta o que Stacechen e Bento
(2008) chamam de felicidade episódica. Isso por que a felicidade só pode
ocorrer de forma episódica quando o individuo vive em sociedade, pois
considerando o princípio da realidade, o sujeito deve sempre renunciar a uma
certa satisfação em nome da segurança e do controle social. No entanto, como
proposto por Stacechen e Bento (2008), esse modelo explicativo do Princípio da
Realidade como uma barreira à felicidade total não se aplica (pelo menos não
completamente) à nossa realidade de consumismo compulsivo. Isso justifica a
aparente visão de que pessoas que consomem mais são mais felizes. Mas não é por
que essa satisfação se mantém de forma prologada na nossa sociedade atual que isso
irá acarretar indivíduos mais felizes, que conseguem atingir o gozo. Na
realidade, a satisfação plena está mais difícil de ser alcançada em nossa
sociedade do que o foi em épocas passadas.
De modo sucinto, ao contrário do modelo de felicidade proposto por
Freud (de caráter episódico), o que vemos hoje é uma satisfação prolongada e
mais amena. Ao consumir algo e notar que sua satisfação ocorreu de forma amena,
o sujeito se vê compelido a consumir novamente para que assim consiga prolongar
e potencializar essa satisfação. Como tal objetivo não ocorre, o ciclo de
consumismo se perpetua, criando o que vemos hoje na forma de consumismo
compulsivo.
“O ritmo cultuado e estabelecido para o
consumo acaba por criar falsas necessidades que alimentam o desejo do sujeito
alienado na busca pelo objeto de consumo. Assim, os desejos alienados de
consumo, uma vez satisfeitos, são rapidamente substituídos por outros através do
ritmo incessante do consumismo.” (STACECHEN e BENTO, 2008, p. 425)
É interessante notar que essa necessidade da busca da felicidade
imediata ocorre não somente nas relações de consumo, mas também nas relações
sociais, em que o Outro cada vez mais adquire o aspecto de um objeto de
consumo.
Antes a satisfação imediata era sacrificada em nome do trabalho, que
privava o sujeito em prol de uma recompensa futura. Mas na sociedade atual,
essa lógica se modificou, entrando em jogo a lei do “goze agora a qualquer
preço” (Stacechen e Bento, 2008). A mídia perpetua essa necessidade de se gozar
agora, e apenas agora. Não se olha mais para uma satisfação verdadeira e
profunda, mas algo que de tão incessante se torna supérfluo com o tempo, até se
transformar em algo puramente ritualístico, sem ocasionar aquilo que era seu
objetivo inicial: a satisfação do sujeito.
Stacechen e Bento (2008), ao citar Campbell e Schneider, destacam a
questão do consumismo como uma ilusão, algo estabelecido pela imaginação do
sujeito. Tal afirmativa se justifica no exemplo do sujeito que procura no
objeto real uma satisfação fantasiada. Isso por que o sujeito elabora uma
expectativa enorme em torno da coisa, do objeto, e tal elaboração não
corresponde às reais faculdades do objeto em questão. Isso é demonstrado por Stacechen
e Bento (2008)como uma “estetização do bem de consumo”, algo que foi decisivo
no advento da entrada do homem no mundo do consumo ilusório.
No consumismo moderno o valor de uso, a
real utilidade do bem de consumo, ficam em segundo plano. É a promessa de
“felicidade”, a imagem e a idealização do produto o que atrai o consumidor.
(...) a publicidade do mercado, ao incitar que todos consumam, propicia tais
sujeitos a escolha de um objeto – que imaginariamente vai fazê-los livrarem-se
da falta, do vazio de sua existência, da confrontação com outro sexo.
(STACECHEN e BENTO, 2008, p. 427)
Assim, para Stacechen e Bento (2008), o consumismo compulsivo se
assemelha às medidas paliativas que lidam apenas com o sintoma, mas não atingem
a causa primordial. Compra-se muito, procura-se preencher a falta e satisfação
que se tem na vida, consegue-se uma satisfação imediata, mas logo o individuo
percebe que não conseguiu atingir seu objetivo, e retorna desesperadamente ao
consumismo compulsivo, na ânsia de conseguir da próxima vez aliviar seu
sofrimento decorrente da falta do gozo. O gozo, nesse caso, trata-se de uma satisfação
puramente idealizada, ilusória, e não condiz com a realidade.
4 – Considerações Finais
Foi visto até aqui como uma ideologia capitalista influencia um
comportamento tão rotineiro em nossa realidade, que é o consumismo compulsivo.
Para alcançar tal objetivo, demonstrou-se a ideologia reinante do “Ter para Ser” como mecanismos que possibilitam a admiração pelo Outro.
Também recorreu-se às noções de Cultura Narcísica e Sociedade do
Espetáculo para explicar o que o indivíduo busca ao consumir compulsivamente.
Dessa forma, compreende-se que a cultura atual, através de sua ideologia, criou
indivíduos completamente autocentrados, engajados na busca de sua satisfação
unicamente e eternamente preocupados em utilizar a admiração do Outro como
fonte de seu prazer. “Nesse cenário, os bens de consumo parecem constituir o
símbolo do existir. ‘Você é o que você tem’, isto é, roupas, carros, aparelhos
eletrônicos, computadores, internet e qualquer outra bugiganga tecnológica.
Desta forma, refletem o ideal buscado no real: luxo, ostentação e poder” (STACECHEN
e BENTO, 2008, p. 433)
Portanto, o que se pode notar é que o fenômeno do Consumismo Compulsivo
atende a finalidade de reafirmar (de forma completamente equivocada) o Ser do
sujeito, perdido no decorrer da ideologia capitalista que estabeleceu que o
para Ser é necessário Ter. Isso significa dizer que tal
fenômeno é aquilo que perpetua e ao mesmo tempo tenta superar a ideologia
reinante em nossa sociedade pós-moderna. O Ser
perdido é assim buscado pelo sujeito através do único mecanismo que a sociedade
lhe oferece para alcança-lo. Mas esse sujeito não nota que, ao buscar
incessantemente esse Ser que a
ideologia de sua sociedade lhe tirou, ele está estabelecendo a continuidade sua
“prisão”. Fica a questão: se o Consumismo Compulsivo é simultaneamente aquilo
que perpetua e busca superação da ideologia reinante, qual é a saída saudável
para o sujeito que busca sua autonomia frente à sociedade. Aliás, há saída
saudável?
5 – Referências Bibliográficas
LIMA,
Raymundo. Crítica ao gozo capitalista. In: QUINET, Antonio, et al. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia:
Edições Germinal, 2002.
STACECHEN,
Luiz Fernando. BENTO, Victor Eduardo Silva. Consumo Excessivo e Adicção na
Pós-Modernidade: uma interpretação psicanalítica. Fractal: Revista de Psicologia, v. 20 – n. 2, p.421-436, Jul./Dez.
2008.
TEIXEIRA,
Vanessa Leite. COUTO, Luíz Flávio Silva. A cultura do consumo: uma leitura
lacaniana. Psicologia em Estudo,
Maringá, v. 15, n. 3, p. 583-591, jul./set. 2010.
VANIER, Alain.
O Sintoma Social. Ágora v. V n. 2,
p. 205-217 Jul./dez. 2002.
Notas
1 - Esse texto foi escrito numa disciplina de Psicopatologia do curso Psicologia da UFGD.
2 - Para melhores informações sobre o que vem a ser Sociedade do Espetáculo, uma
importante obra é o documentário “Sociedade do Espetáculo” (1973), de Guy
Debord.
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