Hoje aconteceu algo intrigante
comigo. Estava eu, andando na rua, e um rapaz me viu e disse em tom de deboche
e em voz alta (ou melhor, absurdamente alta) a seguinte frase: “Você ‘tá gordo’,
hein Ronald”. Logo após isso, soltou sorrisinhos juntamente com o seu amigo ao
lado. Não tive tempo de me indignar ou dar algum tipo de resposta ao sujeito.
Em vez disso, tentei puxar no fundo de todas as minhas memórias passadas quem
seria aquele sujeito. Quase me frustrei, mas após um longo esforço, me lembrei.
Tal rapaz estudou comigo parte do ensino fundamental e o ensino médio todo. Não
éramos amigos, mas éramos considerados colegas somente pelo fato de estudarmos
na mesma sala. Não havia nada que nos ligasse no passado, e como vocês podem
imaginar, nada que nos ligasse no presente.
Mas estarei mentindo se dissesse
apenas isso. Tal rapaz fazia parte de um homogêneo grupo muito intrigante com o
qual tive contato em tempos escolares. Digo intrigante porque esse grupo fez
não apenas eu, mas todos que se destacavam negativamente na escola se sentirem
mal. E isso era intrigante para mim, pois não entendia porque me sentia tão
mal. Hoje entendo um pouco tais questões. Tal grupo, formado quase
exclusivamente por rapazes orgulhosos de sua masculinidade quase primitiva, taxavam
todos os “desviantes” com apelidos racistas, homofóbicos, gordofóbicos, misóginos
e por aí vai. Eu mesmo já tive tantos apelidos vergonhosos, que o único que me
agradou até hoje foi o apelido de “Coruja”, devido aos meus olhos maiores do
que a média.
No entanto, tive sorte. Aliás,
tive três tipos de sorte. A primeira sorte que tive foi o meu caráter. Ou melhor,
conduta, modo ser, particularidade, ou qualquer nome que melhor se encaixe. O
que quero dizer é que a minha tendência a ser impopular e apreciar a
impopularidade me manteve sempre afastado de um possível desejo de me igualar a
esse grupo que já me deixou muito mal, mas hoje me causa uma certa “tristeza
alheia”. Essa foi minha primeira sorte, e devo muito à minha educação familiar.
A segunda sorte que tive, um pouco
ligada à primeira, foi a minha paixão natural pelos estudos e os meus consequentes
êxitos nos boletins escolares. Isso me dava uma alegria enorme em épocas de
escola, e me fazia sentir orgulhoso de quem eu era, mesmo que aquele grupo de
colegas da escola me dissesse o contrário. Digo que foi sorte porque é com
tristeza que hoje relembro amigos de escola que, tal como eu, eram “desviantes”,
e não tinham nem o prazer de ir bem nos estudos. Isso seria certamente uma
alegria na vida deles, mas hoje, cresceram tentando fazer parte de uma norma
social ridícula, na falsa expectativa de serem “tão melhores” quanto aqueles
que debochavam deles (de nós...).
Por fim, a terceira sorte que
tive eu nomeio como UFGD. Ou melhor, nomeio como Biblioteca da UFGD. Imaginem
vocês um rapaz que sentia que não era tão errado assim como lhe tentaram fazer
acreditar, mas não tinha palavras nem para se defender, nem para criticar
coisas que ele “sabia” que estavam erradas em sua cultura. Bom, esse rapaz era
eu. Agora imaginem a alegria desse rapaz ao descobrir um mundo completamente
novo, e títulos que ele nunca imaginava que poderiam fazer parte de um livro
(ex: “A dominação masculina”, “Racismo e Sociedade”, “História da Sexualidade”,
“Pensar o Corpo”, e tantos outros). Não apenas um vocabulário novo, mas também
uma nova forma de pensar surgiu em mim, dando a certeza de um sentimento já
antigo: eu não era um erro. Isso foi uma sorte tamanha!
Bom, acreditem ou não, tudo isso
passou na minha cabeça após eu me lembrar quem era o rapaz que eu citei no
começo do texto, e logo um riso irônico, mas triste, surgiu. Esse riso teve
dois motivos. Primeiro, porque é um tanto idiota apontar e debochar de dados
tão naturais e comuns como a gordura de alguém. Talvez eu esteja gordo mesmo,
mas, se eu fechar os olhos para a minha pressão e o meu colesterol que estão
igualmente altos, tal fato não me causa estranheza ou tristeza (devo isso às
três sortes que tive). Logo, a tentativa de deboche é sumariamente neutralizada,
sem a necessidade de resposta ou mágoa da minha parte.
O segundo e último motivo do meu
riso é, talvez, o mais triste. Triste porque me fez lembrar da alegoria da
caverna de Platão, do cara que vê a luz e tenta fazer seus pares acreditarem
que a luz existe, mas eles não acreditam por estarem desde o nascimento
adaptados à escuridão e às sombras. Tal como o cara da caverna, é talvez com
tristeza que eu olhe hoje para esse meu ex-colega e veja como ele ainda se
prende a conceitos tão ultrapassados, que não faria sentido para qualquer
pessoa com dois neurônios. É triste também porque é uma amostra de como existe
por aí pessoas com mais de 20 anos, mas ainda infantilizadas, como se vivessem
eternamente na hora do recreio, procurando o “coleguinha diferente” para
debochar dele e se sentir (mesmo que por alguns instantes) superior.
Mas ora, isso tudo é tão triste,
então porque ainda assim eu ri? Bom... eu não sou a pessoa mais boazinha desse
mundo, e talvez não chegue nem perto desse ideal. Mas quando eu estava chegando
em casa e ainda estava com aquele ex-colega na cabeça, não pude deixar de
conter a alegria. E foi uma alegria tão grande, que me fez ter vontade de
agradecer ao meu ex-colega. Se o tivesse visto de novo hoje, talvez mil
agradecimentos a ele eu daria, pois hoje ele me mostrou o quanto eu evoluí
(como todo bom Pokémon) ao me dar um vislumbre dos anos que passei na escola, e
notar que aquele rapazinho magrelo, afeminado e tímido já não se sente mal por
ser assim, tão estranho. Agora me diga, meu caro ex-colega: era essa a sensação
de superioridade que você sentia? Porque se for, eu te entendo. Mas se não for,
obrigado de qualquer forma. Você fez o meu dia ser mais feliz!














