sábado, 30 de novembro de 2013

“A Psicologia como o estudo de interações” de João Claudio Todorov – uma introdução às definições sobre o que é a Psicologia e a Análise do Comportamento

O texto resenhado de hoje é de autoria de João Cláudio Todorov. Todorov possui licenciatura em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1963) e doutorado em Psicologia pela Arizona State University (1969). É Professor Emérito da Universidade de Brasília, e foi Reitor (1993-1997), Vice-Reitor (1985-1989) e Decano de Pesquisa e Pós-Graduação (1985) da Universidade de Brasília. O presente artigo foi publicado por ele no 23º volume da revista Psicologia: teoria e pesquisa, em 2007, e tem por objetivos analisar os problemas existentes nas várias de definições de Psicologia e expor as vantagens, do ponto de vista da Análise do Comportamento, em definir a Psicologia como o estudo de interações organismo-ambiente.

Todorov (2007) inicia seu texto demonstrando a dificuldade que a definição de Psicologia traz a quem ousa defini-la. Quer a caracterize como a ciência da vida mental, quer a defina como uma ciência do comportamento, em ambas as definições só teremos a necessidade de mais explicações.
Indiferentes às deficiências das definições mencionadas, há os que se preocupam com uma definição que contente a mentalistas e a comportamentalistas. Para estes, a Psicologia seria o estudo do comportamento e da vida mental. Contudo, a reunião em uma mesma frase de dois termos indefinidos não melhora uma definição (TODOROV, 2007, p. 57).
O objetivo de Todorov é, a partir de um viés analítico comportamental, dar uma definição que caracterize também o trabalho da Psicologia como um todo. Para Todorov, a Psicologia é uma ciência que estuda as interações entre organismo e ambiente. Como organismo escolhido como objeto de estudo, a Psicologia escolheu o homem, mesmo que ela se utilize de outros animais para teorizar e estudar o comportamento humano.
Também é papel do psicólogo estudar a interação do homem com o ambiente. Mas não são todas as interações que Todorov (2007) considera como papel da Psicologia investigá-las. Assim, ele exclui as interações que se referem a partes do organismo, sendo estas parte das investigações que a Biologia deve tomar para si. Também exclui as interações que lidam com grupos de indivíduos como unidades, tal qual as Ciências Sociais. No entanto, as fronteiras entre as áreas não são rígidas, podendo ser tranquilamente sobrepostas, a ponto de surgir áreas próprias de estudo, como a Psicofisiologia e a Psicologia Social. “[...] a passagem da Psicologia para a Biologia ou para as ciências sociais é muitas vezes questão de convencionar-se limites ou de não se preocupar muito com eles” (TODOROV, 2007, p. 58).
Há, no entanto, de se tomar como verdade um erro de pensamento comum, que é a questão do determinismo total. Todorov enfatiza que, tomar a Psicologia como um estudo das interações não torna o homem nem como um ser acima da natureza (divinizado, especial), e nem como um robô totalmente determinado pela natureza. “Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são modificados pelas conseqüências de sua ação” (TODOROV, 2007, p. 58). Dito isso, o autor inicia então suas considerações sobre os níveis de interação entre organismo e ambiente, com foco nas dicotomias “interno/externo”.
Para Todorov (2007), homem consegue se relacionar com o ambiente externo de formas diretas e indiretas. Diretamente, nosso organismo se utiliza de atributos físicos para agir no mundo físico. Por exemplo, estende a mão para buscar um copo de água. Por outro lado, o organismo pode se relacionar com o mundo através de formas indiretas, como a fala (comportamento verbal). Nesse mesmo exemplo, o organismo conseguiria o copo de água através de um pedido verbal “me dê um copo de água”.
O trecho citado ilustra a divisão do ambiente externo em físico e social. As interações do organismo com seu ambiente social não são de natureza diferente daquelas interações com seu ambiente físico; são apenas mais difíceis de descrever. Essa dificuldade, entretanto, parece ser responsável pelo desenvolvimento independente de diversas áreas da Psicologia e pelas tentativas de desenvolver-se diferentes conceitos e princípios (TODOROV, 2007, p. 58).
Há também o ambiente interno, que pode ser considerado como o ambiente biológico e/ou histórico. Todorov ressalta, no entanto, que tais ambientes são indissociáveis. Não dá para se pensar em ambiente físico, social, histórico e biológico de maneiras separadas. Quando falamos de ambiente interno biológico, estamos afirmando que modificações internas do organismo participam das interações entre o organismo e o ambiente “[...] tanto como estímulos que controlam respostas que os antecedem ou os seguem, quanto como respostas controladas pelos estímulos componentes da interação, como veremos mais adiante” (TODOROV, 2007, p. 59).
Já no que diz respeito ao ambiente interno histórico, as teorias geralmente recorrem a dois tipos diferentes de explicação. Na primeira explicação imperam as teorias defensoras de algum aparato mental interno, tais quais as diversas teorias psicanalíticas apóiam. De outro lado, há as explicações “[...] que referem-se a contingências passadas, observadas ou hipotéticas, como nas também variadas versões atuais do comportamentalismo” (TODOROV, 2007, p. 59).
A decomposição do conceito de ambiente em externo, físico ou social, e interno, biológico ou histórico, é apenas um recurso de análise útil para entender-se a fragmentação da Psicologia em diversos campos e para apontar os diversos fatores que, indissociáveis, participam das interações estudadas pelos psicólogos. Sem a decomposição necessária para a análise, o todo é ininteligível; por outro lado, a ênfase exclusiva nas partes pode levar a um conhecimento não-relacionado ao todo. O jogo constante de ir e vir, de atentar para a interrelação das partes na composição do todo é essencial para o entendimento das interações organismo-ambiente (TODOROV, 2007, p. 59).
A partir disso, Todorov (2007) enfatiza a interdependência entre os conceitos de comportamento e ambiente. Apesar de salientar que não se sabe exatamente hoje o que é e o que não é comportamento, sabemos hoje que comportamento não existe sem ambiente, e descrever o ambiente sem citar o comportamento é algo inútil para um cientista do comportamento. Temos assim uma noção de causa e efeito no que se refere à relação entre o ambiente e o comportamento.
Devemos ao filósofo David Hume (1711-1776) a noção de causa e efeito, onde causa é a mudança numa variável independente, e efeito é uma mudança numa variável dependente. Na questão do comportamento, entretanto, temos como fator relevante as variáveis de contexto, que influenciam a ocorrência ou não do efeito após a ocorrência da causa. Estamos falando aqui de antecedentes históricos. “Contexto não se refere apenas a características atuais do ambiente externo” (TODOROV, 2007, p. 60). Ao dizer isso, Todorov faz referência ao teórico Staddom, que de acordo com ele, estabeleceu a noção de variáveis do contexto
Dessa forma, Todorov conclui seu artigo demonstrando o conceito de contingência e a importância do psicólogo buscar em sua atividade, as contingências que mantém determinado comportamento. “Na análise do comportamento, o termo contingência é empregado para se referir a regras que especificam relações entre eventos ambientais ou entre comportamento e eventos ambientais” (TODOROV, 2007, p. 60).
O artigo é bem claro quanto ao seu objetivo: definir a Psicologia como o estudo das interações. Só que mais do que isso, Todorov se propõe a fazer uma tarefa que poucos ousam, que é dar uma definição geral à Psicologia a partir de considerações da Análise do Comportamento. Num momento em que a Análise do Comportamento é posta de lado quando as diversas Psicologias definem essa área como a “Ciência da Subjetividade”, Todorov parece ter conseguido colocar todas as abordagens numa única definição sem, contudo, excluir a Análise do Comportamento.

Referência

“Bandido bom é bandido morto!”

Festas familiares são, para mim, um verdadeiro treino de paciência e bons modos. Sou analítico por natureza e crítico por criação, mas em eventos micro-sociais, preciso suspender qualquer tipo de análise crítica para poder conviver sadiamente com os demais. Porém, a quantidade de asneiras e abominações que escuto são absurdamente enormes. Ao dizer isso, parece que me considero melhor que os outros, e de fato, eu mesmo já pensei nisso. Não cheguei a conclusões definitivas, mas sei que minha principal diferença nesse mundo é que penso demasiadamente no que digo, característica essa que não ocorre com frequência na nossa sociedade pós-moderna.
Pois bem, participei de uma dessas festas familiares. Cerveja, churrasco e mandioca. Um clima bastante agradável, festivo, alegre. Assuntos envolvendo crises familiares, piadas homofóbicas (“mas é um bichinha mesmo”) e críticas ao jeito que determinada mulher se vestia (“mas parecia uma vadia! Por isso não segura homem”). Enfim, nada mais do que o esperado em uma festa familiar. E assumindo um lado mais “fala que eu te escuto”, consegui escutar tudo e participar das conversas com um sorriso no rosto.
Mas meu sorriso no rosto logo se esvai quando escuto uma frase aleatória: “bom os tempos em que os policiais matavam bandido e não tinha uma alma viva pra questionar!”. Me vi, de repente, numa mesa rodeada de assassinos sanguinários que, movidos por medo, decidem fazer justiça com as próprias mãos. “A polícia não pode fazer nada mais, que a cambadinha dos Direitos Humanos caem em cima!”. O desejo inicial é que a polícia, com todo o poder a eles investidos, possa agir como justiceiros, punindo os cruéis vilões de nossa sociedade. Paulo Ghiraldelli já deixou isso explícito em um artigo seu , ao demonstrar os perigos de se dar tanto poder à polícia. Mas esse é apenas um perigo inicial. O perigo posterior é bem mais terrível.
Vivemos tempos sombrios, onde a opinião da maioria luta para ser capaz de definir o que (ou quem) pode ou não viver. Já fizemos isso no passado. É graças ao acordo feito entre os homens que hoje podemos ultrapassar o que a natureza nos dita em relação ao assassinato (matar para comer). Podemos atualmente matar para vender. Lógico que é um assassinato cheio de regras (apenas vacas, porcos, galinhas, ovelhas e cabritos), mas que se permite uma vez ou outra passar um pouco dessas regras (temporada de caça e pesca). Há outros casos especiais que burlam essa regra em alguns países, por exemplo, onde a pena de morte (judicialmente afirmada) é permitida. Enfim, expus esse caso para demonstrar o quanto a morte já foi e pode ser ainda mais permitida e aceita sem “peso na consciência”.
Ora, defender que a polícia deve agir sem que ninguém se intrometa, e mais, desejar ser um policial inquestionável defensor dos “fracos e oprimidos”, é exatamente o princípio de uma ditadura onde a maioria exerce de maneira selvagem o poder sobre quem não se agrega ou destoa das concepções defendidas pelas massas. Pode parecer exagero pensar assim, e eu gostaria de realmente estar exagerando. Mas a realidade não me permite sonhar tanto assim. Não quero alongar esse texto, mas para notar como a sociedade democrática tem dado espaço para algo que eu chamaria de “selvageria massificada”, quero citar a dificuldade que os discursos diferentes do estipulado pelo atual status quo têm em se colocar no meio acadêmico, onde a premissa básica é criticar a tudo e a todos, menos às concepções marxistas. Mesmo que você nunca tenha lido Karl Marx, é seu dever se posicionar como marxista. Quis dar um exemplo acadêmico para que possamos ver que mesmo a nossa “elite intelectual” tem dado vazão a um posicionamento selvagem a tudo que se contrapõe a ela. É um assunto que rende outro texto, no entanto.
O que precisamos ver agora aqui é como temos caminhado a passos rápidos para uma sociedade onde a vida do indivíduo é sempre posta em cheque pelo seu meio social. Num bairro onde há a suspeita de bandidagem, o suspeito em questão terá sorte se sobreviver há um julgamento socialmente selvagem. Não é o que temos hoje (de forma explicitamente estabelecida), mas é o que deseja nossa sociedade que luta por “acabar com o mal pela raiz”.
Como estudante de Psicologia, é engraçado notar que, de fato, sociedade e indivíduo são instâncias indivisíveis. Leio sobre questões sociais e chego a duvidar delas, até entrar em contato com o cotidiano: palco onde todas as ideologias sociais encenam um teatro não fictício através do indivíduo comum. Hoje, uma peça cujo título é “Bandido bom é bandido morto”, amanhã, uma peça intitulada “Concorde com todos se quiser viver”. Mas o pior de tudo é saber que hoje, como defensor dos Direitos Humanos, sou considerado uma ameaça à família justamente por que na opinião da maioria, eu só quero “defender bandido”. Tudo bem. Não tenho problemas com isso hoje. Mas em relação ao amanhã, só espero morrer de causas naturais (ou seja, sem tortura) antes dos 35, por que depois disso... 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Vejam as luzes de Natal.

Oh!

Vejam

As luzes!

No bairro inteiro

Já podemos vê-las!

Lindas, piscantes, brilhosas

Iluminando noites antes tenebrosas

Noites que antes assustavam inocentes.

Muitas luzes, a todos os cantos de nossa visão

Invadindo os nossos sentidos e as percepções visuais.

Insinuado a chegada de um tempo novo, cheio de esperança.

Mas vejam que estranho. Não eram as mesmas luzes do ano passado?

As mesmas luzes que, através da esperança, prometiam tempos novos e felizes?

Sim! São as mesmas luzes do ano passado, que com seu brilho, nos trazia esperança.

A mesma esperança que tivemos ao vê-las no ano passado durante a ceia de natal em família.

Estranho isso.

Mesmas sensações,

Mesmos sentimentos.

Talvez tenha chegado a hora de entendermos

Que as luzes de natal não são capazes

De tão grandes modificações.

E que essa esperança só pode

Ser depositada no ser humano.


“O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” – para nos lembrar de nossa sensibilidade infantil

"Estranho o destino dessa jovem mulher, privada dela mesma, porém, tão sensível ao charme das coisas simples da vida..." Amélie Poulain


Assistir O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain) deveria constar na lista de filmes que todo mortal deveria ver antes de morrer. Não é pelo caráter autoritário não. É pelo sopro de vida que o filme traz mesmo. Amélie Poulain é um filme tão contagiante, que é quase impossível tirar os olhos da tela. Lhe falta ação, mas lhe sobra emoção. Drama, melancolia, amor, ironia, humor. Tudo misturado com um espírito infantil delicioso.
Produzido na França em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um filme dirigido por Jean-Pierre Jeunet e com roteiro de Guillaume Laurant.  No quesito premiação, em 2002, ganhou Melhor Roteiro Original e Melhor Desenho de Produção no BAFTA, Prêmio da Audiência no Festival Internacional de Edimburgo, Prêmio do Público no festival de cinema de Toronto e Prêmio Adoro Cinema de Melhor Atriz Revelação (Audrey Tautou no papel-título), além das várias indicações: cinco ao Oscar, uma ao Globo de Ouro, sete ao BAFTA, treze ao César e uma ao Grande Prêmio Cinema Brasil.


A história retrata a vida da jovem Amélie (Audrey Tautou) a partir da sua concepção (literalmente, a partir de sua fecundação), seguindo sua infância e chegando à vida adulta de nosso personagem principal e os acontecimentos que a norteiam atualmente. Criada pelos pais, Amélie Poulain quase nunca recebia demonstrações de afeto de seu pai. Os raros momentos de aproximação ocorriam quando seu pai a examinava (ele era médico). Mas a emoção era tanta devido a aproximação do pai, que o coração da pequena Amélie batia muito rápido. O pai, julgando ser aquela uma doença do coração, decidiu educá-la junto com a mãe em casa mesmo, tirando Amélie do convívio social. Como único amigo, Amélie tinha apenas um peixe dourado, que por incômodo da mãe, foi jogado num rio. Ainda na infância de Amélie, presenciamos a morte de sua mãe, que ocorreu de fuma forma trágica e igualmente cômica: uma mulher suicida se jogou do alto de uma igreja e caiu justamente em cima da mãe de Amélie. 


Os anos passam, e Amélie (já adulta) trabalha como garçonete no café Les 2 Moulins, em companhia de personagens bastante cômicos, mas incrivelmente familiares. Temos desde uma balconista que reclama a todo momento estar passando por problemas de saúde (inexistentes na verdade) até um homem ridiculamente obsessivo pela ex namorada.
Mas sua história muda de rumo mesmo quando Amélie vê a notícia da morte de Lady Diana. Surpresa com a notícia, Amélie deixa cair seu vidro de perfume, que ao bater em um dos ladrilhos do banheiro, revela o esconderijo de um tesouro há muito tempo perdido. O tesouro nada mais era do que as lembranças de infância de alguém desconhecido por Amélie, que motivada a entregar o tesouro ao seu verdadeiro dono, Dominique Brotodeau (Maurice Bénichou), se mete em uma das maiores aventuras de sua vida.
Ao ver a alegria de Dominique quando este reencontra seu tesouro, Amélie decide, de maneira anônima, ajudar aqueles que necessitariam de alguma ajuda. Fazendo em seu caminho amigos bastante íntimos e verdadeiros, como o Sr. Joseph (Dominique Pinon), conhecido como "Homem de Vidro”, Amélie se apaixona à primeira vista por um rapaz tão estranho quanto ela, o Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz). Por pura timidez e falta de trato nas relações interpessoais, começa a fazer um jogo de pistas para que ele a encontre. Nino trabalha numa sex shop e no trem fantasma de um parque, coleciona fotografias instantâneas que as pessoas jogam fora, é fissurado por um determinado senhor que tem dessas fotos espalhadas por todas as máquinas da cidade e embarca na aventura que é tentar conhecer a moça que encontrou seu álbum perdido.


Numa cultura tão individualista como a nossa, Amélie consegue, de forma sutil, dar um tapa em nossa cara. Quebrando o hábito de se olhar o próprio umbigo, Amélie consegue atingir também aqueles que só fazem boas ações quando há um público vendo tudo. O engraçado é que a infância de Amélie poderia ter lhe ensinado a ser extremamente individualista (filha única, educada em casa), mas a verdade é que isso não ocorreu. Tímida e introspectiva, ela consegue superar seus traumas infantis ajudando aqueles que passam pelo teu caminho, tal qual uma fada madrinha, que por pura bondade, realiza os sonhos daqueles que realmente merecem. Mas ao contrário dos contos de fadas, onde coisas boas só ocorrem por intermédio da magia, Amélie mostra que ainda é possível ser bondoso(a) mesmo num mundo individualista como o nosso.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“Conceito mente e corpo através da História” – da superstição à Psiconeuroimunologia

Mente e corpo sempre estiveram imbuídos de conteúdos “mágicos”. É o reinado absoluto da superstição desde a pré-história. Pelo menos é essa a visão que Maria da Graça de Castro, Tânia M. Ramos Andrade e Marisa C. Muller querem nos passar em seu artigo Conceito de Mente e Corpo através da História. Publicado na revista Psicologia em Estudo no ano de 2006, o presente artigo é uma introdução bastante resumida (tem apenas 5 páginas) de um tema amplo, que é o problema Mente x Corpo.
O texto se inicia com as considerações históricas sobre saúde e doença, ressaltando o viés supersticioso com o qual sempre foram tratados tais assuntos. Tal intenção em retratar os termos saúde e doença é simples: as histórias entre as duas divisões se confundiram e se misturaram no decorrer dos tempos. Dessa forma, temos um apanhado histórico desde os tempos pré-históricos, passando pela antiguidade, Idade Média e Renascimento, até chegar à Psicanálise e, mais recentemente, aos postulados da Psicossomática e Psiconeuroimunologia.
O problema da doença foi uma preocupação humana desde a antiguidade. E tal preocupação não se resumia apenas ao tratamento da doença, mas sim, sua explicação. O caráter supersticioso foi bastante investigado, por exemplo, nas culturas assírio-babilônicas, graças às descobertas arqueológicas que permitiram vislumbrar a visão dessa cultura já antiga. Na Grécia Antiga, a doença era vista como uma fúria dos deuses. Tal visão grega só se modificou com as explicações dadas por Hipócrates, ofereceram uma visão completamente diferente da que se tinha até então nos tempos antigos.
Hipócrates de Cós (460 a.C.), que deu à medicina o espírito científico, em uma tentativa de explicar os estados de enfermidade e saúde, postulou a existência de quatro fluidos (humores) principais no corpo: bile amarela, bile negra, fleuma e sangue; desta forma, a saúde era baseada no equilíbrio destes elementos (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 39).
Outros pensadores da antiguidade, além de Hipócrates, auxiliaram na modificação não apenas da noção de saúde e doença, mas da própria relação que a nossa alma tinha com o nosso corpo. Demócrito foi um desses pensadores que, a partir da sua teoria dos átomos como unidades indivisíveis, auxiliou na difusão da ideia de que a alma era constituída por átomos, e que a partir dos poros de nossos corpos, nos permitiam as sensações (evidentemente, o que se entende aqui é que as sensações eram atividades da alma). Contribuição importante também deu Cláudio Galeno (129-199), cujas ideias defenderam a teoria dos temperamentos e a influência do desequilíbrio deles na saúde do indivíduo. Como pode se notar, foi a Grécia que trouxe inicialmente a noção de que a doença tinha um caráter interno que a gerava e condicionava. Foi só a partir de Paracelsus (1493-1541) que tivemos acesso à ideia de que doença ocorre por causa de agentes externos. O tratamento deveria ser, portanto, através de agentes químicos externos.
Em seguida, Castro, Andrade e Muller (2006) demonstram a visão que se tinha de saúde e doença na Idade Média. De forma resumida, a doença era um castigo de Deus diante do pecado dos homens. Vale ressaltar que, nesse período, Santo Tomás de Aquino teve um importante papel, pois defendia a ideia de a razão ser atributos divinos da alma humana, separada portanto do corpo. É possível dizer aqui que, provavelmente, as ideias cartesianas vindas de Descartes tiveram suas origens aqui, na Idade Média.
Ao avaliar o período da modernidade nota-se um interesse crescente pelas ciências naturais. Descartes, imerso neste contexto, postulou a separação total da mente e corpo, sendo o estudo da mente atribuído à religião e à filosofia, e o estudo do corpo, visto então como uma máquina, era objeto de estudo da medicina (DESCARTES, 1637/2000 apud CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 40).
Com a chegada do século XX e o advento das teorias psicanalíticas, tivemos um retorno das ideias que ressaltavam o papel do ambiente interno. “Observa-se [no entanto] que desde seu início a psicanálise partiu do corpo, com os estudos de Freud sobre a histeria e sua atenção às conversões” (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 40). E foi em 1917 que a relação corpo/mente foi mais investigada e teorizada. Um influente psicanalista chamado Groddeck postulou que, tal qual a histeria, as demais doenças somáticas tinham um fundo psíquico, simbólico.
No entanto, apesar dessas considerações que buscavam integrar o corpo e a mente, separados desde a época de Descartes, o termo e o campo de investigações científicas denominada Psicossomática só foram cunhados por Heinroth em 1908. Assim,
“[...] psicossomático é definido como todo distúrbio somático que comporta em seu determinismo um fator psicológico interveniente, não de modo contingente, como pode ocorrer com qualquer afecção, mas por uma contribuição essencial à gênese da doença” (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 40).
Castro, Andrade e Muller (2006) ainda colocam como importante ponto na história mente/corpo o nascimento do termo Alexitimia, cunhado por Sifneos. O termo passou a designar todos os indivíduos que não conseguiam verbalizar seus conteúdos internos. “A idéia central é que os sujeitos psicossomáticos se diferenciam dos demais pela pobreza do mundo simbólico, havendo pouca elaboração psíquica. Seu pensamento é do tipo operatório, aprisionado ao concreto e à orientação pragmática, tendo pouca ligação com o seu inconsciente”.
A partir de 1956, temos com Hans Selye o desenvolvimento do conceito de stress, que inicialmente foi denominado síndrome geral de adaptação. A implicação básica das idéias de Selye para a psicossomática é a descoberta de quanto e como o corpo se transforma sob o estresse. Neste sentido o estilo de vida atualmente é considerado como um importante fator para a saúde e prevenção da doença.
Por fim, Castro, Andrade e Muller (2006) demonstram o novo paradigma que vem buscando não apenas a integração mente/corpo, mas sim, uma nova forma de olhar a saúde e a doença, que é a Psiconeuroimunologia. Ela, “[...] tem suas origens no pensamento psicossomático e tem evoluído no sentido da realização de investigações de complexas interações entre a psique e o s sistemas nervoso, imune e endócrino” (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p. 41).
O texto, apesar de curto, é bastante didático e instrutivo sobre o tema que se propõe analisar. Apesar disso, senti falta das considerações sobre o conhecimento egípcio a respeito de saúde e doença que, em sua época, diferia muito das explicações gregas. O conhecimento anatômico do corpo humano certamente deram aos egípcios uma relação diferente com as categorias saúde/doença e corpo/mente(alma). Vale ressaltar que, por ser um texto de autoras aliadas à Psicanálise, esse não é um artigo que coloca em cheque a existência ou não da mente, tal qual a Análise do Comportamento o faz. Mas para início de conversa, é um texto excelente para iniciar discussões até hoje tão acaloradas no meio científico e filosófico.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Olhe o céu...


Tenho criado uma paixão obsessiva pelo céu.
Talvez seja o instinto demonstrando através da admiração a sua condição de servo.
Céu é liberdade.
Responsabilidade é servidão.
Ser livre é ser responsável.
E de tanto admirar o céu, descobri por que somos (sou) tão insatisfeitos.
No fundo, é por que até hoje não sabemos o que é ser livre
Justamente por não sabermos o que é liberdade.


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

“Homo Sedens”, de Marcia Tiburi: fazer e ter história exige seu preço

Se há uma coisa que detesto quando eu leio um texto é entrar em contato com autores citados aos quais eu nunca tive contato. E o texto de Marcia Tiburi me deu essa sensação. Afinal, fiquei doido para criticar o texto dela, mas sem saber quem Norval Baitello Junior (autor citado em seu texto) é, e sobre o que ele fala em suas obras, uma insegurança em relatar minhas opiniões me tomou. Pois bem, essa insegurança foi o combustível, ou seja, meu argumento maior para que eu ficasse parcialmente contra o que Marcia Tiburi quis dizer.


Marcia Tiburi é Graduada em filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1990), e em artes plásticas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996); mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1994) e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999) com ênfase em Filosofia Contemporânea. Seus principais temas são ética, estética e filosofia do conhecimento.
O texto em questão, Homo Sedens, foi publicado na edição 185 da Revista Cult, e trata da questão do nomadismo (nem sabia que essa palavra existia...) na nossa cultura atualmente. Marcia Tiburi retrata algo inquestionável nos dias de hoje: passamos a maior parte de nossas vidas sentados. Ao citar Norval Baitello Junior, e seu livro O pensamento sentado (Unisinos, 2012), Marcia consegue demonstrar o papel do “assento” (o de se sentar, por favor... acento agudo só se for com C) naquilo que ela chama de “cultura sedentária”.
Dessa forma, o assento teria na nossa cultura um papel crucial: nos domesticar, trasnformando-nos em corpos dóceis e mentes estagnadas. Assim, Marcia não vê problemas em considerar os nossos pensamentos (e comportamentos certamente) como “pensamento-bunda”[1], ou seja, um pensamento marcado por ser originado e desenvolvido no conforto da cadeira, atrás de um computador ou de um livro.
O primata que somos se ressente de não poder mover-se”. Negar a natureza em nome da disciplina. Esse é o ponto fundamental do texto de Marcia. Num momento histórico em que nos forçamos a seguir a disciplina, em prol de um reconhecimento social diante de um esforço por nós estabelecidos, nossa natureza essencialmente primata e, portanto, nômade estaria subjugada às amarras de uma cadeira. Para Marcia Tiburi, só há uma escapatória: fugir.
Ao ler o texto, não pude deixar de concordar com essas colocações. É fato consumado a noção de que as coisas caminham para esse lado realmente. Um privilégio dedicado antes apenas à elite aristocrática e à elite intelectual, hoje o “viver sentado” parece ter virado rotina comum de indivíduos das classes A, B e C da sociedade. Mas será que é algo tão ruim assim?
Infelizmente, não consigo considerar os fatos como apenas bons ou ruins: tal qual uma moeda, todos os fenômenos tem esses dois lados. E no caso do “sentar” não podia ser diferente. O que perderíamos se nossa cultura, de uma hora para outra, descobrisse (ou decidisse) que para pensar, a categoria comportamental “sentar” é apenas uma opção? Me parece que seríamos exatamente o que Márcia Tiburi quer defender: a volta da nossa condição originalmente e unicamente primata.
Considero hoje que um dos maiores ganhos de nossa cultura foi ter aprendido que a mera comunicação oral é espacial e temporalmente limitada. Isso por que a mera informação oral atinge poucas pessoas de uma vez só, e também dura por pouco tempo. Afinal, quem se lembra do que falou ontem, entre as 16:15 e as 16:37? Difícil não? Mas certo dia o homem descobriu a escrita. Descobriu que suas histórias, seus ensinamentos e seus costumes poderiam ser passados adiante sem dificuldade. No entanto, a escrita trouxe um probleminha contornável, mas chato: ela (a escrita) é muito possessiva. Geralmente, exige de quem a cria um longo momento de dedicação, algo que a comunicação oral não exige. A escrita ensinou ao homem o valor da disciplina. Em outras palavras, a escrita ensinou o homem a se sentar.
Hoje, há uma verdadeira canonização dos filósofos gregos que se jogavam ao ócio e começavam a filosofar oralmente. Algo romântico e até lindo. Sim, eu acho lindo! Mas não sejamos hipócritas. Quem conheceria hoje Socrátes, se não fosse a disciplina de Platão em se dispor a sentar e escrever sobre Sócrates? Provavelmente nem o conheceríamos. O que seria da história, se não houvessem homens empenhados a sentarem suas bundas atrás de uma mesa, para escreverem a história? Certamente, teríamos uma reinvenção da roda constante, e aí sim estaríamos onde Marcia Tiburi nos quer: fora dos automóveis, que não existiriam por que não saberíamos que uso uma roda teria.
Aqui. retorno ao que disse inicialmente: minha angustia por não ter lido Norval Baitello Junior. Meu texto final deve ter, agora, uma série de desentendimentos e incoerências horríveis. Mas me pergunto se essas incoerências existiriam se eu tivesse me proposto a sentar minha bunda e me debruçar sobre a obra desse autor (ui que frase sexy!)? Acredito que não. Por isso, receio mesmo que tenhamos nos tornado tão sedentários. Falo por mim mesmo, que muitas vezes perco de ver um céu e um pôr do sol tão lindos. Mas entre isso, Marcia Tiburi, e uma vida de primata, se balançando de galho em galho nas copas das árvores,  eu prefiro o “conforto” de minha cadeira e o prazer de ler tão belíssimo texto escrito por vossa senhoria.


Link do artigo
Homo Sedens


[1] Eu ri nessa parte. Sério! Marcia Tiburi já me ganhou com isso, pois adoro quem usa expressões geralmente polêmicas de forma tão natural. Afinal, o que tem demais em falar "bunda"? Gente... 

domingo, 24 de novembro de 2013

Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, de Luiz Felipe Pondé: um convite para sairmos da Zona de Conforto

Eu poderia dizer que ler Pondé é algo perigoso, que Pondé é um autor ácido, que ele um autor desprezível. Mas pelo contrário. Iniciarei essa resenha dizendo que Pondé me trouxe um alívio muito grande. Adiante, explicarei o porquê. O Guia Politicamente Incorreto da Filosofia é um livro de autoria de Luiz Felipe Pondé, escrito em 2012, com 24 capítulos mais a Introdução e o Apêndice. Desde então, o livro vem causado um mal-estar acompanhado de uma agitação muda por parte dos intelectuais brasileiros. De fato, é um livro que quebra a ordem dos discursos existentes na área das Ciências Humanas dentro da academia brasileira.

Pondé (2012) inicia seu texto dizendo ser um pecador, e logo fica clara a razão de tais palavras, pois Pondé se coloca claramente contra certas ideias já bem estabelecidas pela esquerda brasileira que vem, com o decorrer dos anos, se colocando como verdade imutável e inquestionável. Em suma, o pecado de Pondé é ser contra o Politicamente Correto (PC). Ao iniciar suas considerações, Pondé relata a Aristocracia como o modelo político baseado (inicialmente) na honra e na coragem, mas as deturpações causadas pelo dinheiro (tornando a Aristocracia um governo baseado em acúmulo de bens) mudaram a ordem do jogo, e trouxe os “covardes” para uma posição bastante privilegiada:  amparados pelos “fortes, que carregam o mundo nas costas”.
Tais considerações iniciais são os passos primeiros para a questão da Democracia, tão criticada por Pondé. Mas que fique claro: Pondé é a favor da Democracia sim, pois de todos os modelos políticos, ela seria o modelo menos pior. Mas Pondé não fecha os olhos para os problemas decorrentes dela. Para ele,
Uma coisa que salta aos olhos é a tentativa de chamar qualquer um que critique a democracia de antidemocrático. A sensibilidade democrática é 'dolorida', qualquer coisa ela grita. Mas não me engano com ela: esse 'grito' nada mais é do que a tentativa de impedir críticas que reduzam a vocação também tirânica que a democracia tem como regime 'do povo'. O 'povo' é sempre opressor, Rousseau e Marx são dois mentirosos. [...] Quando aparece politicamente, é para quebrar coisas. O povo adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo. Se der comida, casa e hospital, o povo faz qualquer coisa que você pedir. Confiar no povo como regulador da democracia é confiar nos bons modos de um leão à mesa. Só mentirosos e ignorantes têm orgasmos políticos com o 'povo' (Pondé, 2012).
Sua primeira crítica é em relação à Democracia como um “Estado de Direitos”. Para Pondé, “a tentativa de definir a democracia como “regime de direitos” é ridícula porque não existem direitos sem deveres, por isso a ideia de que piolhos ou frangos tenham direitos começa a aparecer quando separamos direitos de sua contrapartida anterior, os deveres” (Pondé, 2012). Como uma moedas de dois lados, a Democracia também tem duas faces. Em uma delas, está incrustada a insígnia “Liberdade”. Do outro lado, a palavra “Igualdade”. Mas engana-se quem pensa que tais características se demonstram mutuamente. Tal qual uma moeda que cai ao chão, mostrando portanto apenas um de seus dois lados, a Democracia também se caracterizaria por mostrar apenas um de seus lados. Para Pondé é, infelizmente, a Igualdade que se mostra mais hoje. A conta é simples: a Liberdade acentua diferenças e estimula criatividades; em contrapartida, a Igualdade nivela as diferenças e desestimula a criatividade. Por isso que, para Pondé, vivemos em um país (mundo?) de seres medíocres.
Quando você dá mais espaço para a liberdade, a tendência é de que a democracia acentue as diferenças entre as pessoas e os grupos que nela vivem. Mas a liberdade é a chave da capacidade criativa e empreendedora do homem. Quando você acentua a igualdade, a democracia ganha em nivelamento e perde em criatividade e geração de abundância para as pessoas (Pondé, 2012).
Num segundo momento, Pondé se propõe a falar do Outro, se colocando claramente contra o discurso dos que dizem amar a todos de maneira igual. “Quando os outros estão longe, do outro lado do oceano, é bonitinho amar todos os outros, mas, quando eles têm cheiro e hábitos outros, a coisa complica” (Pondé, 2012). Também se propõe a falar da ausência de indivíduos autônomos, devido à massificação constante que existe. Ninguém tem uma personalidade autônoma... E isso é muito visível numa sociedade que visa a estereotipação de costumes. Ser diferente é complicado. Na infância, descobrimos que é algo ruim e que traz punições, na vida adulta,aprendemos a necessidade de seguir padrões. A democracia, por agir a partir da massificação de opiniões, odeia a autonomia, a individualidade, a especialidade.
Posteriormente, temos as considerações sobre o Romantismo e a Natureza. Pondé abomina de forma explícita os românticos e amantes da natureza. Ou melhor, os utópicos, que sonham em voltar a “viver em árvores, tais quais os índios”. Aliás, Pondé claramente é contra a visão romantizada do índio como seres que devem ter seus costumes seguidos, devido ao amor que tem pela natureza.
Qualquer relação adulta com a natureza implica saber que ela gera e destrói, e, nesse sentido, nossos ancestrais eram mais adultos do que os retardados contemporâneos, pois cultuavam a natureza não porque viam nela uma pureza santinha, mas porque enxergavam o poder dos deuses ancestrais: beleza e crueldade. (Pondé, 2012)
No capítulo Sexualidade, mulheres e homens, Pondé faz críticas incisivas ao movimento feminista, principalmente no que para ele é um menosprezo de toda uma base biológica do comportamento humano (psicologia evolucionista). Mulheres, para Pondé, são seres que dependem da figura masculina, e ao negarem isso para si mesmas, sofrem por isso. Um exemplo de comportamento biologicamente herdado seria o caso das mulheres que se sentem obrigadas a comprovar sua fidelidade para segurar um parceiro. Em contrapartida, haveria, ainda sob esse viés evolucionista, uma insegurança no homem que o leva a garantir seu papel e sua obrigação para com a cria da mulher.  Em A beleza e a inveja, Pondé da continuação às críticas ao feminismo. Aqui, o feminismo teria um lado "inconsciente" altamente invejoso: já que há mulheres bonitas, e as feias são a maioria, o feminismo criado faz com que as bonitas não possam usar de sua beleza para conseguir o que querem. Para Pondé, o feminismo é, no fundo, um movimento criado por mulheres feias ressentidas.
Em Os funcionários da educação, do intelecto e da arte, Pondé relata o quanto os intelectuais são covardes na medida em que são inseguros sobre o conhecimento que possuem, o que os faz atacar os que pensam diferente. A insegurança faz com que os intelectuais se escondam atrás do muro das teorias estabelecidas. Isso garante o status. No capítulo Religiões, fundamentalismos e budismo light, Pondé destila suas críticas ao islamismo e ao budismo “zen”, que nas suas palavras, são assuntos que tornam qualquer pessoa melhor vista socialmente quando são religiões e culturas defendidas e vivenciadas, já que colocam em cheque a cultura americana dos costumes. Assim, falar mal do islamismo é algo ruim. Politicamente incorreto. Há determinadas crenças que podem ser criticadas. Outras não.
Já em Natureza humana e felicidade, é posto em cheque a bondade e a busca desenfreada pela felicidade. De acordo com Pondé,
Hoje em dia, uma das coisas mais queridas do politicamente correto é afirmar que não existe natureza humana. O homem e a mulher seriam “construídos social e historicamente”. Vimos uma ideia semelhante a essa no campo da sexualidade chamada de teoria de gênero. A praga PC gosta dessa afirmação porque ela passa a ideia de que podemos melhorar (seja lá que sentido tiver essa expressão “melhorar”) infinitamente intervindo “livremente” em nós mesmos construindo seres humanos “livres” de si mesmos. A raiz dessa crença também é a tentativa de superação da ideia de pecado como “DNA da natureza humana” nas suas mais variadas formas. A intenção é negar que exista qualquer limite ao desejo humano de se transformar, fazendo da vida humana uma espécie de “projeto contínuo do humano novo”. Por isso, afirmar que exista natureza humana por si só já soa politicamente incorreto, porque parece impor o limite que nossa adolescente modernidade detesta ver (Pondé, 2012).
Colocando e lado as ideias de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que veria o homem como naturalmente bom, Pondé prefere acreditar no que nos ensina Thomas Hobbes (1588-1679), que acredita ser o homem ruim por natureza, e a sociedade como um entrave a toda essa maldade. O Politicamente Correto colocaria o homem numa fantasia de anjo, livre de pecados e maldades. Se acaso um dia ele for agir de forma cruel, é por conta dos Outros que dominam o mundo. Em Teologia de esquerda ou da libertação, Pondé retoma essa questão a partir das novas perspectivas religiosas no catolicismo. De acordo com ele, essa roupagem angelical sobre o humano acarretou em uma mudança de paradigma: o homem não contém mais o mal em si (pecado). Sob um viés marxista, seria a sociedade que o domina, tornando-o mal.
Pondé ainda faz reflexões sobre a culpa, a justiça social e a ditadura nos capítulos subseqüentes. Em relação à culpa, ela seria apenas um elemento básico da socialização humana que o Politicamente Correto faz questão de esquecer. Já o problema com a justiça social é que esse conceito “[...] vale como angústia romântica, mas peca por falta de parâmetros racionais e concretos para realizá-lo” (Pondé, 2012). Utilizando o discurso dos esquerdistas, que a partir dos exemplos de países europeus que dão certo a partir da Justiça Social, Pondé destaca que é fácil haver justiça social num país de iguais com um contingente populacional e um espaço territorial pequeno. O que não é o caso do Brasil, onde a miscigenação, a diversidade e um espaço territorial vasto são características primeiras de nosso país. Por fim, Pondé dá um crédito à Ditadura Militar, cujo os efeitos são caracterizadas como uma “salvação nossa” que nos livros de um governo cuja exemplo atual seria a Cuba e sua ditadura esquerdista.
Dizem que em relação ao Pondé, das duas, uma: ou você o ama, ou você o odeia. Eu, que por gostar de estar na posição privilegiada dos “em cima do muro”, estou na metade do caminho entre o amor e o ódio por Pondé. Vários pontos de seus argumentos eu discordei, concordei com muitos e fiquei perplexo com a maioria. Algo que me deixou bastante desconfortável, foi sua posição a favor da ideia de uma “natureza humana original”. Sou um defensor daqueles que dizem ser o homem um animal que não tem natureza, mas sim, condição. Uma condição humana. Não sei se é ironia, mas Pondé parece acreditar de forma demasiada numa natureza humana que foge (ou vai além) dos aspectos biológicos. Seria uma influência de sua formação psicanalítica?
Outro ponto conflituoso foi quando Pondé deixa explícito o seu desconforto com a Democracia que “dá voz aos medíocres” para opinar sobre o mundo. Discordo dele nesse ponto. É óbvio que nem todos são cultos eruditamente para opinar sobre o mundo. Mas a capacidade reflexiva é algo que considero como um direito básico humano. Se eu tirar esse direito dos alunos de Engenharia (como no exemplo dado por Pondé em determinado ponto do livro), a capacidade criativa cessa, e uma nova ditadura se inicia. O pensamento (mesmo aquele não filosófico) estimula a criatividade e a liberdade.
Outro ponto que discordei é sobre a defesa de Pondé a favor dos testes em animais. Sou veementemente contrário a isso. Acredito que a ética (animal e humana) não impede os avanços da ciência. Pelo contrário, serve de guia, pois caso contrário, teríamos uma ciência cega.
No que diz respeito ao feminismo (contrapondo-o às descobertas evolucionistas), eu digo que fiquei perplexo, como uma paralisia muscular que nos atinge diante de um medo súbito. De fato, parece que fazer constatações biológicas sobre sexos adquire o tom de machismo em certo ponto. Até concordo com Pondé. Mas suas críticas parecem que recaem unicamente na classe intelectual, que colocam na sociedade todo o peso da culpa sobre a existência do machismo.  Mas fora do ambiente intelectual e acadêmico, sinto uma naturalização do que é papel de homem e papel de mulher. Isso me deixou perplexo e com a sensação de que a generalização foi demasiada e, por isso mesmo, equivocada. Mas que fique claro: Pondé defende os direitos das mulheres, mas não é a favor dos que dizem ser a mulher e o homem seres iguais (diferenciados “apenas” pelos órgãos genitais).
Também senti que a questão da beleza colocada aqui por Pondé foi muito superficial. Queria mais considerações históricas e biológicas do termo. Históricas, por que o modelo de beleza mudou muito com o tempo. Biológicas, por que em termos de seleção natural, uma mulher magra não simboliza o fértil e saudável; a mulher gorda representaria a saúde e a fertilidade, pois se alimentaria mais e teria um corpo mais forte capaz de suportar a brutalidade masculina. Pondé retratou muito bem essas questões no capítulo Sexualidade, mulheres e homens, mas agora parece que esqueceu de considerá-las no capítulo Beleza e inveja. A feia inveja a bonita. Mas de que feia ele fala? E por que mudar o padrão belo-feio é algo que parece irritá-lo?
Essas são minhas principais críticas e pontos conflituosos que o texto me deixou. Mas antes de fazer essas considerações eu deveria deixar meu agradecimento a Pondé. Há muito tempo sinto uma verdadeira ditadura tomar conta das discussões dentro da área das Ciências Humanas. São discussões mecanizadas, com jargões e frases já bem definidas e, quando colocadas no momento certo, são as palavras-chaves para o sucesso de uma palestra, ou debate ou discussão acadêmica. Mas Pondé resgata aquilo que mais estimo no ideal de Democracia: o falar sem medo da represália. Óbvio que não é isso que vemos na prática quando os discursos intelectuais são unificados. Mas duvido que seja considerado democrático um espaço onde o embate de ideias não existe, apenas um discurso fechado que usa do diálogo apenas como forma de se fortalecer e estabelecer permanentemente.
Por fim, cheguei à conclusão de que Pondé é para poucos e para todos. Para poucos, por que são poucos os que sentem esse incomodo atual que a Democracia real nos coloca: o poder falar apenas quando a fala for de concordância e não coloque em cheque a própria Democracia. Mas paradoxalmente é para todos, pois dá um verdadeiro “puxão de orelha” nos que não duvidam de suas verdades. Enfim, Pondé é para os que não temem sair de sua Zona de Conforto.

REFERÊNCIA
PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo : Leya, 2012.

sábado, 23 de novembro de 2013

Palavras de um ser desprezível.

Sou uma pessoa amorosa.
Sim, acreditem, sou extremamente amoroso.
Sou de uma linhagem já ultrapassada de românticos sonhadores.
Sou uma relíquia de um tempo que nem sequer vivi.
Mas sou, antes de tudo, um frustrado.
Um frustrado, pois desde cedo descobri que os livros que eu lia eram mentirosos.
Um frustrado, pois notei que o mundo em que eu vivia era desprezível.
Um frustrado, pois a cada vez que ofereci meu amor, o mesmo foi negado, rejeitado e desprezado.
Hoje deixei a frustração de lado. Perdi minha fé no homem.
Minha filosofia de vida, que diz ser o homem fruto de sua história, é no fundo falsa.
Falsa por que duvido que o ser humano melhore.
Falsa por que sei que nada melhorará...
Mas o que queria eu? Que todos se jogassem aos meus pés e fizessem o que eu bem entendesse?
Talvez. E diante desse talvez, a razão resolveu dar lições à emoção.
A razão ensinou à emoção que a tristeza é um sentimento terrível e enfraquecedor.
A razão ensinou à emoção que nada está necessariamente, em meu controle.
A razão ensinou, enfim, que um amor dado de forma tão benevolente não pode ser oferecido pela segunda vez.
Tudo bem. Decidi aceitar os ensinamentos. Do amor para a frustração. Da frustração para a tristeza. Da tristeza para o ódio. Do ódio para o desprezo.
Aprendi que amor é algo muito bonito para ser dado à seres humanos.
Aprendi que o pecado original é o menor dos pecados do ser humano.
Aprendi que onde há muita moral, há muita maldade.
Hoje, mudei finalmente. Em nada lembro o garoto risonho de outrora.
Ou quase...
Resolvi oferecer o amor que tenho à inocência de um leão selvagem.
À flor que desabrocha.
À vivacidade de uma criança.
À sabedoria de um idoso.
Se amo? Sim, claro. Mas aprendi que tal amor é belo demais para ser jogado à lama.
Hoje sou imbatível. Ou quase.
Hoje sou o terror dos terroristas.
Hoje sou o inferno dos pecadores.
Hoje eu sou o medo dos amedrontadores.
Quase um justiceiro. Quase um anjo negro. Quase...
Mas sorriso ainda está lá, escondido.
Sou hoje um sereno caminhante por entre as ruas dos agonizantes.
Sou um mero espectador, que com o poder do silêncio, nega a dar a mão ao pobre pecador.
Sou um fiel companheiro do tempo, só que mais debochado, risonho diante da desgraça daqueles que riem dos bem-aventurados.
Sou, enfim, um ser desprezível. Não!
Sou o desprezo em pessoa.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O ódio é uma virtude ou um defeito humano? Com a palavra, Luiz Felipe Pondé

Que o ódio é odiado e, paradoxalmente, muito vivido pelos homens é fato. Mas com o tempo, parece que passamos a menosprezar o papel fundamental do ódio não só na cultura humana, mas na natureza toda. Em nome de uma filosofia ou psicologia do amor, parece que esse afeto é uma ditadura cada vez mais exigida atualmente. Enfim, Pondé debate sobre isso no café filosófico apresentado em 09 de setembro de 2011, intitulado “As Sombras do humano”. 
Luiz Felipe Pondé caracteriza-se por um pensamento polêmico. Conservador e liberal por definição própria, Pondé é fã filosofia trágica, tendo como um importante influência o filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900). Escreve semanalmente no jornal Folha de S.Paulo e é autor de diversas obras, entre elas, Contra um mundo melhor: Ensaios do Afeto (2010) e Guia Politicamente Incorreto da Filosofia (2012).
Na palestra em questão, Pondé não fala apenas do ódio. Ele praticamente defende o ódio. E não é para menos. Com seus argumentos muito bem colocados, Pondé demonstra o quanto o ódio é inerente à nossa natureza humana (que eu prefiro chamar de condição). Ora, bem sabemos que no meio natural, os animais necessitam do ódio para sobreviver. Longe de ser alguém que diz que o amor não existe, ou que o ódio sempre prevalece, Pondé apenas retrata o quanto o ódio está presente na vida humana e na natureza, tanto quanto o amor. Negar o ódio é negar essa natureza.
Acho bacanas as considerações de Pondé, e dificilmente alguém discordaria: o ódio está aqui, a todo o momento. Mas sinceramente, sinto um aperto na garganta quando palestras do tipo retratam um ser humano acabado, pronto, terminado pela natureza. Logicamente sabemos que o ser humano não é uma metamorfose ambulante em todos os sentidos (tal qual Raul Seixas ingenuamente acreditava). Temos aí nosso corpo biológico que, apesar de sofrer as transformações do tempo, ainda é o mesmo corpo. Mas ainda aí há sim uma transformação. Até mesmo na teoria darwiniana, a natureza não é estática. Dentro de suas especificidades e possibilidades, ela se modifica. Mas Pondé parece menosprezar isso. De qualquer forma, independente se o que Pondé fala retrata uma realidade passageira ou momentânea, não há meios de discordar dele em outros sentidos.
Como bem retrata a descrição da palestra dada por Pondé, “olhar para as razões do ódio pode ser o melhor remédio contra o amor à mentira, a nova hipocrisia contemporânea. A questão de fundo a ser enfrentada é: quando amar seria um erro?”

Abaixo, o vídeo:



"Meu Mestre, Minha Vida" (1989) - O que Skinner nos diria sobre Joe Clark?

O sistema escolar que adotamos em nossa sociedade é, via de regra, um sistema que prioriza o controle aversivo. É pelo menos a conclusão que chegou Burrhus Frederic Skinner em seus textos, em especial A Escola do Futuro (SKINNER, 1991). Apesar de Skinner ter baseado seus escritos sobre a educação a partir de suas análises sobre a escola norte americana, é possível dizer que tal análise também cabe na educação brasileira, pois como bem sabemos, esse sistema escolar é de uso generalizado na sociedade. Sobre o controle aversivo, Skinner fala sobre a punição a partir do que se segue:
A punição, uma forma padronizada de suprimir o comportamento, é quase sempre a única maneira que os animais têm de controlarem-se uns aos outros, e nós retivemos boa parte dessa prática. Os governos usam a punição para suprimir o comportamento perturbador dos cidadãos e de outros governos. Porém a punição para o “não-estudar” é diferente. O objetivo é fortalecer o comportamento, não suprimi-lo. Os estímulos aversivos são usados como reforçadores negativos. No entanto, dessa prática resultam os mesmos subprodutos. Se podem, os estudantes fogem para jogos de hóquei ou então para o sono, e contra-atacam vandalizando a escola e agredindo os professores. (SKINNER, 1991)

É com essas palavras que se pode iniciar a análise do filme “Meu mestre, minha vida”, que conta a história de Joe Clark, um professor com métodos rudes e autoritários que foi convidado para assumir o cargo de diretor da problemática Escola High School em Nova Jersey de onde tinha sido demitido. Usando métodos nada ortodoxos, resolve provocar uma revolução no colégio que já havia sido tomado pelas drogas, gangues, vândalos e todo tipo de violência possível.

Apesar do apelo emocional do filme (a aclamação do “super-herói” que salva a todos), é inegável algumas desvantagens que os métodos utilizados por Joe traz. Apesar dos problemas em si terem se resolvido durante o filme (menos tráfico de drogas, alunos passando em provas de conhecimento), o controle aversivo utilizado por Joe traz inúmeros problemas de relacionamento, tanto entre professores quanto entre alguns alunos da escola. Isso é muito visível em uma cena específica, onde uma das professoras conseguiu expressar de uma forma bem marcante como ela se sentia oprimida pela postura do diretor em não respeitar e reconhecer os esforços do corpo docente. Relatando que trabalha na escola não só pelo emprego mais também pelos alunos, e que a postura extremamente autoritária e punitiva do atual diretor estava prejudicando a atuação dos professores.
Além disso, o fato de Joe ter tomado para si toda a responsabilidade da escola traz um problema que pode se refletir no futuro: a decaída de todos os avanços conquistados. Ou seja, a saída desse professor da escola pode prejudicar o desempenho de todo o sistema escolar, fato que é normal em situações onde não é um grupo o responsável pelos avanços, mas sim, uma única pessoa.
Como é sempre dito em relação ao controle aversivo, é fato de que essa forma de controle traz sim resultados, e na maioria das vezes imediatos, mas são pouco eficientes a longo prazo, além de que traz respostas emocionais desagradáveis àquele que está a mercê desse controle. Filmes como esse, apesar de trazerem a esperança ao telespectador de que a situação educacional pode melhorar, mostram que a única medida é o controle aversivo. Poucos filmes demonstram a eficácia de um sistema baseado no reforço positivo, até por que seus resultados são mais visíveis a longo prazo do que num curto espaço de tempo. Não podemos negar a vantagem que o filme traz em reforçar a imagem do professor engajado com a causa da Educação, mas focar excessivamente em métodos pouco eficientes quando vistos sobre um viés temporal longo apenas perpetua os problemas educacionais existentes no momento atual.

REFERÊNCIAS

SKINNER, B. F. Questões recentes na análise comportamental. Campinas, SP: Papirus, 1991

A Ideologia Capitalista e o Fenômeno do Consumo Compulsivo como Psicopatologia Pós-Moderna: Ter para Ser

1 – Introdução
Com o advento da sociedade capitalista, surgiu um fenômeno pouco visto em épocas anteriores: o consumo compulsivo. Comprar desenfreadamente o que não se precisa, jogar fora o que é considerado descartável e inutilizado (mesmo que na realidade tal bem de consumo esteja completamente apto a ser consumido por algum tempo),  e etc., são alguns dos exemplos mais rotineiros em nossa realidade, e talvez até nos identifiquemos com tal situação. Afinal,dos mais velhos aos mais jovens, quem não se sente seduzido pelas notícias constantes de “novos produtos” (que de novo não tem nada) prometendo “acabar com todos os nossos problemas”?
É óbvio que a nossa sociedade capitalista, para sobreviver, necessita de pessoas que consumam, e não apenas aquilo que ainda não têm, ou o que precisam. É necessário consumir inclusive aquilo que é desnecessário ou que não se precisa por já possuí-lo. Dessa forma, estar atualizado é uma constante necessidade em nossa cultura, necessidade essa que só é saciada com a compra desenfreada de bens de consumo.
A necessidade de fazer com que a economia jamais fique estática fez com que se criasse a ideia de “consumo como algo imprescindível para existência humana”. De certa forma, tal postulado não é errado, pois somos seres consumidores por natureza, nossa sobrevivência depende daquilo que o ambiente nos oferece. Mas tal ideia de consumo alcançou níveis alarmantes, ocasionando na noção em voga na sociedade atual que, a saber, diz respeito à capacidade aquisitiva como um meio de classificação dos sujeitos, onde a quantidade e a qualidade do consumo estabelecem as categorias sociais existentes na atualidade.

Mas afinal, onde fica o sujeito nessa história? Como ele lida com as particularidades que a sociedade capitalista pós-moderna lhe oferece como mecanismos de existência?

2 – O Capitalismo e a Ideologia do “Ter para Ser
De acordo com Marx (1989 apud TEIXEIRA e COUTO, 2010, p. 584), cada época se diferenciou por modos de produção específicos que delimitavam e estabeleciam o crescimento econômico de cada sociedade. Dessa forma, “(...) a pré-história da civilização humana, orientada pela produção rural e artesanal, é superada pelas relações de produção burguesas a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial” (TEIXEIRA e COUTO, 2010, p. 584). Com essa mudança no modo de produção, há uma reviravolta nas relações de trabalho e nas formas de consumo. A atividade produtiva sai do quadro familiar e divide-se em atividades técnicas limitadas, visando puramente o crescimento econômico através da produção em larga escala. Tem-se assim um ambiente propício para a vinda do capitalismo e a posterior Cultura de Consumo como efeito do primeiro.
Para Lima (2002), o capitalismo controla a todos de maneira inconsciente, influenciando pensamentos e ações. “Sua função é produzir desde coisas até idéias, valores e crenças que se situam no lugar da causa do desejo humano. Portanto, a função ideológica do sistema capitalista serve tanto para justificar suas contradições quanto para disfarçar sua radical falta de ética.” (LIMA, 2002, p. 41). Dessa forma, Lima (2002) enfatiza o fato de que o capitalismo transforma os sujeitos, tirando-lhes a autonomia e transformando-lhes em meros objetos consumistas, alimentados pela ilusão de liberdade e satisfação.
A incessante angustia de se ver excluído e o desejo profundo de estar incluído são sentimentos que andam de mão dadas rotineiramente para o sujeito. Em um ambiente onde o Ter supera o Ser, o sujeito se vê compelido a consumir cada vez mais para que assim ele “seja” alguma coisa na sociedade a partir daquilo que ele tem. “Não ter é se tornar marginal ao sistema. Em verdade, a operação capitalista faz o objeto agir amarrando o sujeito” (LIMA, 2002, p. 42). Basta refletirmos um pouco para notarmos que o principal segredo do capitalismo é manter os sujeitos sempre em falta, sempre desejando algo que eles mesmos não sabem o que é, para que quem sabe um dia alcance aquilo que tanto procura.

3 – A Cultura do Narcisismo e a Sociedade do Espetáculo: possibilidade de explicação do fenômeno do consumismo compulsivo
De acordo com Birman (2003 apud STACECHEN e BENTO, 2008), a psicopatologia da pós-modernidade é pautada na cultura do narcisismo e da chamada Sociedade do Espetáculo. A partir dessas proposições, é correto dizer que atualmente o indivíduo pós-moderno busca a exaltação do eu, usando de todos os mecanismos disponíveis ao seu alcance para aparecer no cenário social. Esses mecanismos incluem a preocupação estética com a aparência e o uso do outro como fonte de prazer próprio.
O sujeito da contemporaneidade projeta a imagem dos papéis que ele próprio interpreta no cenário social com o objetivo de atingir a “inflação” do eu. Assim, os mesmos papéis assumidos pelos indivíduos nos meios sociais adquirem a função de “máscaras a serem vestidas” em massa para capturar uma espécie admiração padronizada enquanto ideal social. (STACECHEN e BENTO, 2008, p. 424)
Dessa forma, o indivíduo da pós-modernidade é caracterizado, de acordo com Stacechen e Bento (2008), pela sua busca incessante de uma exterioridade admirada pelo ambiente social. No entanto, é óbvio que tal objetivo não é sempre alcançado por todos, e Birman (2003 apud STACECHEN e BENTO, 2008) salienta a existência de pelo menos duas psicopatologias próprias da pós-modernidade que evidenciam o fracasso que o indivíduo tem ao não ser admirado socialmente. São elas a Depressão e a Síndrome do Pânico, que seriam os sintomas do “fracasso da participação do sujeito nesta cultura narcísica”.
Ora, se a Cultura do Narcisismo dita que o indivíduo deve se preocupar única e totalmente com o seu exterior, seria certo pensar que o consumismo compulsivo seria um dos mecanismos que permitem essa ostentação e admiração social? Tudo indica que sim. Parece óbvio que a busca de bens de consumo são meios mais que eficazes de conquistar essa admiração pelo outro no nosso atual contexto pós-moderno.Isso é o que Stacechen e Bento (2008) denominam como “estetização da existência”, que tem como ponto de partida a busca dessa admiração padronizada pelo social.
Aparentemente, tal busca parece que tem um final feliz, pelo menos àqueles que têm a possibilidade de consumir de forma compulsiva sem interrupções. É dito isso por que são tais sujeitos que demonstram em nossa sociedade serem os indivíduos mais felizes existentes, que estão sempre com um sorriso no rosto e renovando o semblante feliz a cada novo bem de consumo adquirido.
Em Mal Estar das Civilizações, Freud salienta o que Stacechen e Bento (2008) chamam de felicidade episódica. Isso por que a felicidade só pode ocorrer de forma episódica quando o individuo vive em sociedade, pois considerando o princípio da realidade, o sujeito deve sempre renunciar a uma certa satisfação em nome da segurança e do controle social. No entanto, como proposto por Stacechen e Bento (2008), esse modelo explicativo do Princípio da Realidade como uma barreira à felicidade total não se aplica (pelo menos não completamente) à nossa realidade de consumismo compulsivo. Isso justifica a aparente visão de que pessoas que consomem mais são mais felizes. Mas não é por que essa satisfação se mantém de forma prologada na nossa sociedade atual que isso irá acarretar indivíduos mais felizes, que conseguem atingir o gozo. Na realidade, a satisfação plena está mais difícil de ser alcançada em nossa sociedade do que o foi em épocas passadas.
De modo sucinto, ao contrário do modelo de felicidade proposto por Freud (de caráter episódico), o que vemos hoje é uma satisfação prolongada e mais amena. Ao consumir algo e notar que sua satisfação ocorreu de forma amena, o sujeito se vê compelido a consumir novamente para que assim consiga prolongar e potencializar essa satisfação. Como tal objetivo não ocorre, o ciclo de consumismo se perpetua, criando o que vemos hoje na forma de consumismo compulsivo.
“O ritmo cultuado e estabelecido para o consumo acaba por criar falsas necessidades que alimentam o desejo do sujeito alienado na busca pelo objeto de consumo. Assim, os desejos alienados de consumo, uma vez satisfeitos, são rapidamente substituídos por outros através do ritmo incessante do consumismo.” (STACECHEN e BENTO, 2008, p. 425)
É interessante notar que essa necessidade da busca da felicidade imediata ocorre não somente nas relações de consumo, mas também nas relações sociais, em que o Outro cada vez mais adquire o aspecto de um objeto de consumo.
Antes a satisfação imediata era sacrificada em nome do trabalho, que privava o sujeito em prol de uma recompensa futura. Mas na sociedade atual, essa lógica se modificou, entrando em jogo a lei do “goze agora a qualquer preço” (Stacechen e Bento, 2008). A mídia perpetua essa necessidade de se gozar agora, e apenas agora. Não se olha mais para uma satisfação verdadeira e profunda, mas algo que de tão incessante se torna supérfluo com o tempo, até se transformar em algo puramente ritualístico, sem ocasionar aquilo que era seu objetivo inicial: a satisfação do sujeito.
Stacechen e Bento (2008), ao citar Campbell e Schneider, destacam a questão do consumismo como uma ilusão, algo estabelecido pela imaginação do sujeito. Tal afirmativa se justifica no exemplo do sujeito que procura no objeto real uma satisfação fantasiada. Isso por que o sujeito elabora uma expectativa enorme em torno da coisa, do objeto, e tal elaboração não corresponde às reais faculdades do objeto em questão. Isso é demonstrado por Stacechen e Bento (2008)como uma “estetização do bem de consumo”, algo que foi decisivo no advento da entrada do homem no mundo do consumo ilusório.
No consumismo moderno o valor de uso, a real utilidade do bem de consumo, ficam em segundo plano. É a promessa de “felicidade”, a imagem e a idealização do produto o que atrai o consumidor. (...) a publicidade do mercado, ao incitar que todos consumam, propicia tais sujeitos a escolha de um objeto – que imaginariamente vai fazê-los livrarem-se da falta, do vazio de sua existência, da confrontação com outro sexo. (STACECHEN e BENTO, 2008, p. 427)
Assim, para Stacechen e Bento (2008), o consumismo compulsivo se assemelha às medidas paliativas que lidam apenas com o sintoma, mas não atingem a causa primordial. Compra-se muito, procura-se preencher a falta e satisfação que se tem na vida, consegue-se uma satisfação imediata, mas logo o individuo percebe que não conseguiu atingir seu objetivo, e retorna desesperadamente ao consumismo compulsivo, na ânsia de conseguir da próxima vez aliviar seu sofrimento decorrente da falta do gozo. O gozo, nesse caso, trata-se de uma satisfação puramente idealizada, ilusória, e não condiz com a realidade.

4 – Considerações Finais
Foi visto até aqui como uma ideologia capitalista influencia um comportamento tão rotineiro em nossa realidade, que é o consumismo compulsivo. Para alcançar tal objetivo, demonstrou-se a ideologia reinante do “Ter para Ser” como mecanismos que possibilitam a admiração pelo Outro. Também  recorreu-se às noções de Cultura Narcísica e Sociedade do Espetáculo para explicar o que o indivíduo busca ao consumir compulsivamente. Dessa forma, compreende-se que a cultura atual, através de sua ideologia, criou indivíduos completamente autocentrados, engajados na busca de sua satisfação unicamente e eternamente preocupados em utilizar a admiração do Outro como fonte de seu prazer. “Nesse cenário, os bens de consumo parecem constituir o símbolo do existir. ‘Você é o que você tem’, isto é, roupas, carros, aparelhos eletrônicos, computadores, internet e qualquer outra bugiganga tecnológica. Desta forma, refletem o ideal buscado no real: luxo, ostentação e poder” (STACECHEN e BENTO, 2008, p. 433)
Portanto, o que se pode notar é que o fenômeno do Consumismo Compulsivo atende a finalidade de reafirmar (de forma completamente equivocada) o Ser do sujeito, perdido no decorrer da ideologia capitalista que estabeleceu que o para Ser é necessário Ter. Isso significa dizer que tal fenômeno é aquilo que perpetua e ao mesmo tempo tenta superar a ideologia reinante em nossa sociedade pós-moderna. O Ser perdido é assim buscado pelo sujeito através do único mecanismo que a sociedade lhe oferece para alcança-lo. Mas esse sujeito não nota que, ao buscar incessantemente esse Ser que a ideologia de sua sociedade lhe tirou, ele está estabelecendo a continuidade sua “prisão”. Fica a questão: se o Consumismo Compulsivo é simultaneamente aquilo que perpetua e busca superação da ideologia reinante, qual é a saída saudável para o sujeito que busca sua autonomia frente à sociedade. Aliás, há saída saudável?

5 – Referências Bibliográficas
LIMA, Raymundo. Crítica ao gozo capitalista. In: QUINET, Antonio, et al. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia: Edições Germinal, 2002.
STACECHEN, Luiz Fernando. BENTO, Victor Eduardo Silva. Consumo Excessivo e Adicção na Pós-Modernidade: uma interpretação psicanalítica. Fractal: Revista de Psicologia, v. 20 – n. 2, p.421-436, Jul./Dez. 2008.
TEIXEIRA, Vanessa Leite. COUTO, Luíz Flávio Silva. A cultura do consumo: uma leitura lacaniana. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 3, p. 583-591, jul./set. 2010.
VANIER, Alain. O Sintoma Social. Ágora v. V n. 2, p. 205-217 Jul./dez. 2002.



Notas
1 - Esse texto foi escrito numa disciplina de Psicopatologia do curso Psicologia da UFGD.
2 - Para melhores informações sobre o que vem a ser Sociedade do Espetáculo, uma importante obra é o documentário “Sociedade do Espetáculo” (1973), de Guy Debord.

Vamos falar de Ética nas Ciências Humanas? O exemplo do filme A Experiência (2011)

Experiência (Das Experiment) é um filme alemão produzido em 2001 sob a direção de Oliver Hirschbiegel. A história trata sobre uma equipe de cientistas que seleciona 20 presos para uma experiência psicológica em troca de um prêmio em dinheiro. Os prisioneiros são divididos em dois grupos: oito deles fazem o papel de guardas e os outros 12, de prisioneiros. As cobaias são isoladas numa área da penitenciária, onde certas regras devem ser obedecidas e mantidas pelos guardas. No início, a camaradagem reina no ambiente. Mas a violência não tarda a explodir quando um ex-repórter disfarçado de preso lidera um motim. Os guardas reagem com brutalidade crescente. O conflito se agrava com a morte de um dos presos e a captura dos cientistas que criaram o projeto.

Dos vários pontos fundamentais relacionados à ética que se destacam no filme, um deles são os relacionados à pesquisa, ou melhor, do uso de seres humanos em pesquisas científicas. Desde os horrores provocados nos campos de concentração nazistas, houve uma preocupação maior com os perigos que a ciência poderia trazer à liberdade e dignidade humana. Não à toa, em 1948 a ONU viu a necessidade de criar um conjunto de leis e princípios que norteassem não apenas a pesquisa com seres humanos, mas toda a responsabilidade e cuidado que se deve ter com a raça humana. Nascia assim a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Mas a pesquisa ainda não garante a liberdade e dignidade em sua totalidade apenas com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Há uma necessidade sempre presente de se refletir sobre nossas técnicas e métodos antes, durante e após as pesquisas e intervenções com seres humanos. E nesse momento que a atitude ética não só pode, mas como deve imperar.
No filme, tal atitude ética aparece em poucas vezes. Não houve momentos reflexivos sobre se a experiência proposta pelo grupo de cientistas era uma intervenção que garantia a liberdade e dignidade de todos os participantes.

O momento de apresentação da pesquisa e seleção dos participantes deixou claras certas particularidades que demonstraram desde o princípio que aquela pesquisa não seguiria rumos tão éticos. O cientista-chefe da pesquisa ressaltou que aqueles que desejassem sair da pesquisa, deveriam escolher aquele momento (a seleção), já que depois, tão processo de saída seria mais complicado.
E de fato, a saída dos participantes da pesquisa foi bastante dificultada pelos cientistas. Um dos participantes não teve o pedido de saída aceito imediatamente. Os cientistas precisavam de um tempo para “pensar sobre”. Após isso, a situação desse participante não ficou tão boa com os guardas do local. Nesse momento, sua condição de “livre participante” foi trocada para a condição de “prisioneiro”.
Questões emocionais foram bastante trabalhadas no filme também, demonstrando o quanto a violência não se apresenta apenas em seu aspecto físico. Humilhação, piadas depreciativas e apelidos nada amigáveis se tornaram rotina no curto espaço de tempo em que guardas e prisioneiros eram observados pela equipe de cientistas.
Dessa forma, “A Experiência” pode ser um exemplo do quanto a ciência pode ser cega quando não anda lado a lado com a ética. E isso causa sérios problemas quando seu objeto de estudo é o ser humano, seja em seus aspectos sociais ou individuais.